Luísa Rogério (texto) e Ampe Rogério (fotos) - 08.05.2015 . 02h00
O Rede Angola foi ao acampamento da seita Luz do Mundo.
Uma catana ao lado de uma roupa de bebé no acampamento da "Luz do Mundo" |
O brilho das chapas no alto da montanha é visível a partir do desvio da estrada de asfalto para a picada. Adiante, quatro motorizadas com passageiros afrouxam a marcha para deixar passar o carro da Polícia. Crianças brincam fora de casa. Animais domésticos vagueiam. Há vida na aldeia Km 25 – que ganhou o nome devido à distância que a separa do município da Caála, província do Huambo. Subimos por entre caminhos levemente acidentados. No vale, um pequeno lago é circundado por plantações de milho e cana-de-açúcar. De um lado, a encantadora visão da verdejante cadeia montanhosa realçada pelo sol acanhado de fim de estação. Do outro, o acampamento. Os registos associados a este lugar contrastam com a paisagem. São horripilantes.
Em busca dos factos relacionados com a seita do auto-proclamado profeta Kalupeteka, a reportagem do Rede Angola permaneceu cerca de duas horas no local onde tudo começou. Escoltados por uma viatura com sirene da polícia, atingimos a montanha do Sume a meio da tarde de domingo passado. Cerca de duas semanas depois da morte de nove polícias, em circunstâncias não completamente clarificadas, o acampamento guarda evidências de que algo extremamente grave aconteceu.
A meio da montanha, o acampamento da Luz do Mundo
Pequenas casas de chapas se sobrepõem até ao cume da montanha. Uma casa maior, a que chamavam “base logística”, apresentada como a residência do pastor Julino Kalupeteka, distingue-se das demais. Pouco antes há um mastro ao lado de um posto de iluminação eléctrica. António Mendes, director provincial da comunicação social no Huambo que conduziu a equipa de reportagem do RA ao palco dos sinistros incidentes, não dá entrevista. Apenas acompanha. Os agentes da polícia fazem esclarecimentos pontuais face às recorrentes perguntas.
“Foi aqui onde o Catumbela morreu”, deixa escapar uma agente, apontando para o mastro. Esse indicador é comum à maioria das distintas versões que recolhemos sobre os acontecimentos. Outro dado comum sugere que os agentes teriam levado o mandado de captura enquanto decorria um culto religioso. Mulheres e crianças entoavam cânticos religiosos enquanto os homens praticavam os actos de que resultaram a morte dos agentes da polícia. “Os grupos corais cantavam e os agentes da polícia eram massacrados com paus, catanas e pedras. O comandante veio a correr porque os outros já estavam aqui”, ouvimos alguém dizer. À matança se terá seguido o silêncio. Quando os agentes na rectaguarda se aperceberam da morte dos colegas, supostamente avisados por membros da seita que lhes mandaram recolher os cadáveres, começaram os disparos contra os civis. Fontes ligadas a organizações da sociedade civil e partidos da oposição afirmam que comandos das Forças Armadas Angolanas e da Polícia Nacional teriam disparado indiscriminadamente e queimado tudo.
O que aconteceu exactamente permanece incógnito. A realidade é que no acampamento permanecem os rastos de destruição. Saltam à vista casas queimadas e sinal de fogo posto em vários pontos. Embora testemunhas ouvidas sob anonimato aludissem ao barulho de “bombas como no tempo da guerra” e a explosões resultantes de armamento pesado de uso exclusivo do Exército, como metralhadoras PKM e lança-granadas RPG7, não visualizamos sinais de tiros nas chapas. O mesmo não se pode dizer da vandalização, dificilmente atribuível a fogo cruzado.
O ACAMPAMENTO E A DESTRUIÇÃO
Culto sem fiéis
Consta que antes do fatídico dia 16, o acesso ao acampamento era precedido por três postos de controlo. Agora restam as fitas amarelas da polícia que demarcam o local de um crime. Não registamos presença de militares no acampamento onde as crianças não podiam estudar – porque Jesus Cristo nunca estudou. No sentido inverso, o alto grau de destruição reflecte violência. Um carro e várias motorizadas queimadas. Uma máquina escavadora usada para a agricultura e um gerador industrial no mesmo estado saltam à vista no panorama idílico transformado em vale dos horrores. Ainda assim, é perceptível a configuração bem estruturada do acampamento.
Dentre as partes distintas, destaca-se a área reservada aos cultos a céu aberto. Também havia uma espécie de auditório com pedras a servirem de bancos. Aqui se faziam os anúncios religiosos e comunicações importantes da vida na comunidade. Os armazéns estavam dispostos de acordo com o tipo de bens. A julgar pelos vestígios, numa casa de chapa encontramos sal. Noutra milho. A seguir feijão. Os frescos eram conservados em arcas frigoríficas. Contamos pelo menos duas e um fogão destruídos. Apenas a botija de gás estava intacta a poucos metros da casa de Kalupeteka.
“A última batalha. Jesus está voltando. Você está preparado?”
Neste lugar que poderia servir de representação da paisagem do que seria o paraíso na terra, vêem-se rastos de sangue em pontos distintos. À frente da casa do líder da seita há uma espécie de esplanada, a partir da qual apreciava tudo ao redor. Recebia energia eléctrica do gerador. Tinha água canalizada. Notamos os mosaicos no quarto-de-banho situado na parte externa da habitação, cuja entrada estava barrada por chapas enegrecidas pelo fumo. Impossível espreitar pelas janelas.
Apesar da precariedade das habitações, os moradores da montanha de Kalupeteka não viviam propriamente como na época de Jesus Cristo. A parabólica sem a respectiva tampa não os elevou aos céus, mas trouxe o mundo ao acampamento. Centenas de detalhes fazem-se notar na implantação de um sistema de organização comunitária funcional. O esboço de algum padrão de modernidade é compreendido através da máquina misturadora de música, placa de dados de uma empresa de telefonia móvel celular e cartão da televisão.
No caderno apanhado no terreno não encontramos anotações relevantes. Nada de nomes ou números de telefone. Simplesmente citações bíblicas. “A última batalha. Jesus está voltando. Você está preparado?” É o sugestivo título da cassete que vemos no chão. Duas malas enormes estão largadas. Muitas peças de roupa, principalmente de crianças e mulheres em várias posições. Algumas camisas, casacos e poucas calças masculinas aparecem num ou noutro lugar. Assim como sapatos e botas de borracha azuis que eram usadas pelos homens. Algures, duas mocas. Uma catana ensanguentada ao lado do fato infantil de cor azul inviabiliza a imaginação de ambiente de paz. Terá realmente o Laboratório de Criminalística passado por ali?
VIDEO
Ao fim da tarde o vento traz um cheiro forte. É, com certeza, algo putrefacto. O quê, preferimos não imaginar. O cheiro de milho torrado abafa o primeiro. E o número de pombas vai aumentando por cima da casa onde morou o pastor Kalupeteka. Novamente o vento. Desta vez provoca ruídos semelhantes a assobios. Estes recordam que ali viveu gente que terá deixado poucos traços da actual localização.
A água jorra imparável sobre uma bacia azul. Escorre para o chão. Perde-se na mata. Várias centenas de pratos, canecas, talheres e utensílios de cozinham levam à conclusão de que eram armazenados no mesmo lugar. Panelas com restos de comida ressequida ainda estão no terreno.
Fogareiros assentes em três pedras, como se faz em áreas rurais, resistiram à confusão. Tropeçamos em lenha, bidões e frascos de perfume. Croques e roupas de criança prendem a nossa atenção. Eram apenas miúdos. Onde quer que estejam não tiveram oportunidade de compreender o que passou.
Os cliques das máquinas fotográficas interrompem o silêncio. Inevitável o arrepio. Qualquer semelhança com um lugar assombrado não será mera coincidência. Quando saímos de lá, só as pombas ficaram empoleiradas por cima da casa de Kalupeteka. Onde estão os habitantes e os peregrinos?
ROUPA SEM GENTE
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