João de Almeida Dias - 24/6/2015, 23:20
Desde sábado, 20 ativistas foram detidos em Angola por lerem um livro com soluções de luta pacífica contra o regime. "A questão não é judicial, é política", diz ao Observador o advogado de três deles.
José Eduardo Santos é Presidente de Angola desde 1979. 36 anos depois, é o quarto líder político há mais tempo em exercício em todo o mundo.
Ao sétimo capítulo, a polícia entrou sala adentro e deteve-os em “flagrante delito” por estarem a preparar “atos tendentes a alterar a ordem e a segurança pública do país”.
Aconteceu no sábado, dia 20 de junho, quando pelo menos 13 pessoas se juntaram num apartamento do bairro Vila Alice, em Luanda, capital de Angola.
Estavam lá para debater um livro que já liam em conjunto há algum tempo, ao ritmo de um capítulo por semana.
O título da obra, assinada pelo jornalista angolano Domingos da Cruz, é tão longo quanto explicativo: “Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura — Filosofia política da libertação para Angola”.
À semelhança do que aconteceu com o livro “Diamantes de Sangue”, de Rafael Marques, este ensaio de Domingos da Cruz não tem autorização para ser editado em Angola e circula de forma clandestina.
Capa do livro de Domingos da Cruz. A obra não foi editada e circula em Angola apenas de forma clandestina.
Já iam para lá de metade da obra — que tem um total de 13 capítulos — quando vários polícias e militares irromperam pela casa e detiveram cada um dos ali reunidos.
De seguida, estes foram levados às suas casas em carros das autoridades.
Lá chegados, uma segunda viatura encarregava-se de cortar o trânsito ao mesmo tempo que eram apreendidos computadores, cartões de memória, documentos e cópias do livro de Domingos da Cruz.
Segundo o relato de várias testemunhas, não foi apresentado nenhum mandado que autorizasse estas buscas domiciliárias.
Detidos em parte incerta
No dia seguinte, o autor do livro, que não esteve presente no debate de sábado, foi detido no posto fronteiriço de Santa Clara, no Sul de Angola.
Walter Tavares, advogado do jornalista, nega que o seu cliente estivesse em fuga: “Ele ia para Windhoek [capital da Namíbia, a Sul de Angola] para uma consulta de oftalmologia”, disse ao Observador, garantindo que os bilhetes desta viagem já tinham sido comprados antes das detenções de 20 de junho.
Desde essa data, já houve pelo menos duas dezenas de detenções.
Fonte próxima dos ativistas que aguardam liberdade garantiu ao Observador que só na segunda-feira é que foi conhecido o paradeiro de alguns dos detidos.
E, quatro dias depois da leitura em conjunto de sábado, ainda não se sabe ao certo onde está parte deles.
Walter Tavares disse também “que no início muitos não estavam a aceitar a comida que lhes dão na esquadra, porque tinham medo que pusessem alguma coisa lá”.
Questionado pelo Observador, o Comandante Geral da Polícia Nacional em Luanda, Ambrósio de Lemos, recusou comentar o sucedido: “Não tenho nada a dizer sobre isso, não é assunto da minha competência”. De igual forma, tentámos contactar a Embaixada de Angola em Portugal, sem sucesso.
Além de Domingos da Cruz, a maior parte dos detidos são conhecidos ativistas cujos passados estão recheados de encontros com o regime angolano.
É o caso do rapper luso-angolano Luaty Beirão, conhecido por Ikonoklasta, cujas letras aguçadas podem ser ouvidas a solo ou nos Batida.
E também o de Manuel Nito Alves, um jovem de 19 anos que, em 2013, quando ainda era menor de idade, foi detido por “ultraje ao Presidente” depois de ter encomendado t-shirts onde José Eduardo do Santos, o chefe de Estado angolano, era apelidado de “carrasco nojento ditador”.
Manuel Nito Alves vestido com a t-shirt que lhe valeu uma detenção por “ultraje ao Presidente” em 2013. Desde essa altura, costuma aparecer em público com t-shirts com mensagens semelhantes.
Livro para “mudar a mentalidade das pessoas daqui de forma pacífica”
A obra de Domingos da Cruz é inspirada no livro “Da Democracia à Ditadura”, escrito em 1993 pelo norte-americano Gene Sharp — pode fazer o download da tradução para português do Brasil aqui.
Este ensaio de Sharp serviu como uma proposta genérica de 198 maneiras para combater de forma pacífica a ditadura em Mianmar (na altura Birmânia).
Entretanto, tem sido fonte de inspiração noutras ocasiões, como no Egipto de 2011.
E, agora, na Angola de 2015.
O Domingos [da Cruz] uma vez fez um post com os dizeres do Gene Sharp. E aí nós pedimos para ele reescrever o livro daquele autor, adaptando-o à realidade angolana. Queríamos uma coisa igual, que nós pudéssemos usar aqui para debater formas de combater a nossa ditadura e de mudar a mentalidade das pessoas daqui de forma pacífica”, disse ao Observador a ativista Laurinda Gouveia numa entrevista por telefone.
Laurinda Gouveia esteve presente em todas as leituras e debates deste livro — exceto na de sábado.
“Tive sorte”, confessa.
“Mas da última vez que nos reunimos, no outro sábado [dia 13 de junho], começámos a notar que havia umas pessoas a tirar fotografias lá perto.
Só que não demos muita importância a isso, pensámos que ia dar para continuar a fazer aquilo, porque só estávamos mesmo a ler um livro e a debater o seu conteúdo.”
Walter Tondela, que além de ser advogado de Domingos da Cruz é também o representante legal de Manuel Nito Alves e de Luaty Beirão, recorre à ironia para falar deste episódio: “Como é que seria possível 13 pessoas, que estão apenas a ler um livro, estarem a preparar um golpe de Estado?”.
Noutro registo, diz aquilo que lhe parece ser uma evidência: “A questão que temos em mãos não é judicial, é claramente política. Foram detidas várias pessoas que acreditam que Angola não é uma democracia, mas sim uma ditadura.
E a razão das suas detenções são os seus ideais políticos”.
Captura de écrã do vídeo da música “Cuca (Isso é o que eles querem)” dos Batida, cantada pelo rapper Ikonoklasta, detido no sábado.
O jurista confirmou ao Observador que os seus clientes — estão os três detidos na 29ª esquadra de Luanda — foram interrogados na terça-feira.
As sessões começaram às 12h00 e só acabaram por volta da meia-noite. Walter Tondela esteve presente durante todo o processo.
Sem adiantar pormenores, admite a hipótese de o Ministério Público acusar todos os envolvidos neste caso de “crimes contra a segurança do Estado”.
“Poderão matar-me ou abrir um processo judicial”
Foram detidos alguns cidadãos que de uma ou de outra forma procuravam criar condições para alterar a ordem constitucional estabelecida, de formas que em devido tempo os órgãos de investigação criminal notificaram o Ministério Público sobre algumas dessas suspeitas”, disse o ministro da Interior de Angola, Ângelo Veiga Tavares, à Rádio Nacional de Angola na quarta-feira.
À mesma estação, o Procurado-Geral da República, João Maria de Sousa, adiantou que “o Ministério Público deu luz verde para diligências e assim se confirmou que os jovens reunidos estavam a tratar de questões e a preparar atos que poderiam levar à destituição do Governo”.
O caso atraiu a atenção da Amnistia Internacional (AI), que em comunicado disse que “esta é mais uma tentativa das autoridades angolanas para intimidarem qualquer pessoa que tenha uma perspetiva diferente no país”.
As autoridades têm de libertar imediata e incondicionalmente os ativistas detidos, que são prisioneiros de consciência, e pôr fim à intimidação dos ativistas de direitos humanos”, disse o vice-diretor da AI para a África Austral, Noel Kututwa.
Em janeiro, Domingos da Cruz deu uma entrevista à Deutsche Welle, onde falava do seu livro “Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura”.
Nessa ocasião, a propósito da oposição ao governo angolano, defendeu a “construção de um grande plano estratégico” em vez de “lutas de forma isolada ou pequenas estratégias”.
E demonstrou estar preparado para a possibilidade de o seu livro lhe trazer alguns problemas num futuro próximo: “Tenho plena consciência de que se trata de uma ditadura.
Poderão matar-me ou abrir um processo judicial, por exemplo”.
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