segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Um grito cansado

Catalunha   Opinião
Luís Russo
29 out 2017 19:38

A proclamação da República Catalã é apenas o reflexo da exaustão de todos os outros caminhos possíveis para fazer representar, por via concertada, o mandato de quase ou ligeiramente mais da metade da população catalã — premissa que só se poderia verdadeiramente verificar através de um referendo reconhecido por Madrid, sem intimidações, sem urnas roubadas e com escrutínio internacional — que detém maioria no Parlamento da Catalunha (Parlament), em formato de coligação improvável, é certo, mas uma maioria tão legítima quanto a que temos na nossa Assembleia da República.

"Quando os cidadãos pedem um referendo porque querem opinar, a resposta não pode ser: 'tranquilos, não se preocupem, confiem em mim'. 
Que piada vem a ser esta? [...] Deitar-se-iam por terra todas as propostas de diálogo. [...] Esta é a voz dos cidadãos, senhores deputados, e é muito fácil ouvi-la. 
E convém fazê-lo".

Esta frase é de Rajoy, em 2006, quando reclamava a realização de um referendo em todo o Estado para a aprovação do Estatuto de Autonomia da Catalunha, e encarna o principal problema de que padece a gestão do braço de ferro entre Madrid e Barcelona: a utilização por parte do PP de qualquer argumento político que convenha a finalidade última de vencer a batalha territorial.

É um jogo, ambos (Generalitat e governo central espanhol) jogam e ambos querem vencer, sem espaço para concessões. 
A triste realidade é que quem não escolhe um lado acaba sempre por defender uma quimera: ou uma reforma constitucional que permitisse realizar um referendo mas em que seria o conjunto dos espanhóis que seriam consultados, o que não resolve a questão de base já que demograficamente a Catalunha é minoritária dentro de Espanha; ou posições como a do Podemos, defendendo um referendo reconhecido por Madrid, que se realize com garantias e onde se seduzam os catalães a permanecer em Espanha, mas sem apresentar propostas concretas de como permitir que esta opção (naturalmente impedida pela Constituição) acontecesse, tratando-se, no fim do dia, de um jogo perigoso de luz e sombra que serve mais propósitos eleitorais que uma verdadeira solução.

Mas nem sempre foi um jogo. 
Tempos houve em que se procurou uma via concertada, primeiro através da referida reforma do Estatuto da Catalunha, garantia de maior autonomia política em relação a Madrid, aprovada pelo Senado espanhol e Parlament, e referendada na Catalunha no princípio da década passada. 
No entanto, em 2010 o Tribunal Constitucional retirou alguns artigos do Estatuto e esvaziou de validade jurídica o reconhecimento da Catalunha como "Nação", o que, aliado à vitória do PP nas eleições de 2011, levou ao crescimento da pejorativamente chamada "fábrica de independentistas". 
Por fim, esta tornou-se um verdadeiro "complexo industrial" a partir de 2012 com as mobilizações multitudinárias que a partir desse ano se realizaram, materializando uma aspiração política não correspondida e que não encontrava espaço na esfera institucional.

Como em política é impossível ignorar metade da população indefinidamente, a Generalitat viu-se (a princípio relutantemente) obrigada a veicular a causa independentista, primeiro através de uma consulta não vinculativa em 2014, sendo que depois tiveram lugar as eleições de 2015, em que venceu uma maioria independentista. 
Por fim, e face à posição estanque do Estado de ignorar que esta gente sequer existe, dá-se agora o "rebentar da barragem" que representa o referendo unilateral e a Declaração Unilateral de Independência (DUI).

O Reino de Espanha amanheceu este sábado com um manancial de críticas ao que sucedeu no Parlament. 
Que os catalães querem a independência é algo com que podemos concordar ou não, mas, inegavelmente, nunca foi este o ponto central das aspirações de 80% dos catalães, que é o direito a serem ouvidos. 
Que o referendo não teve garantias; é tão verdade como mentira a foto profusamente partilhada nas redes do eleitor que votou quatro vezes, como a observação em primeira mão das pessoas que, como eu, no dia 1 de outubro, estiveram nas mesas de voto e verificaram que efetivamente existia um censo eletrónico, cuja fiabilidade é todavia impossível de apurar. 
Que o mandato popular que saiu do referendo não reflete uma maioria representativa da sociedade catalã; estima-se que tenham votado a favor da independência 40% dos eleitores catalães, cifra que é de resto o dobro da que votou no Governo que legitimamente governa Espanha (aproximadamente 7,9 milhões de votantes, numa população eleitoral de 37 milhões, ou seja, cerca de 21% dos espanhóis) e que aplica o artigo 155, que suspende a autonomia da região.


Atravessou-se o Rubicão. 
No dia 9 deste mês e perante o pérfido silêncio da União Europeia, o porta-voz do PP referiu que desejava que no dia seguinte Puigdemont não declarasse a independência "porque talvez o que a declare acabe como o que a declarou há 83 anos". 
A referência é a Lluis Companys, Presidente da Generalitat fuzilado por Franco em 1940 por ter declarado o Estado Catalão integrado na República Federal Espanhola.

Este episódio serve apenas como mais um exemplo da forma como a maior parte de Madrid perceciona a unidade territorial de Espanha, tendo culminado na proclamação — sem quase nenhum efeito prático a não ser uma escalada viciosa de represálias e de desafeição civil e administrativa — de uma Republica Catalã, que mais não é que o grito cansado de uma gente que se fartou de viver num regime polarizado, pouco tolerante e herdeiro de um período de transição entre uma forma mais pesada e outra mais leve de autoritarismo.

Luís Russo estudou Ciência Política em Lisboa e Estudos Europeus na Bélgica. Desde 2012 que acompanha de perto a realidade catalã, tendo acompanhado o dia do referendo em vários colégios de Sabadell e Barcelona.

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