Joana Mortágua
18 de Outubro de 2017, 7:00
Nenhuma Constituição tem o poder de cristalizar a história a despeito das aspirações democráticas dos povos.
Há meses que a Catalunha nos tem em suspense pelas cenas dos próximos episódios.
Ao choque geral perante a violenta repressão no dia do referendo, sucedeu-se uma Declaração de Independência em modo de pausa à procura do diálogo.
Com a bola do lado de Rajoy, o próximo passo lamentável seria recusar o diálogo proposto por Puigdemont e decidir ativar o Artigo 155.º que retira a autonomia às instituições da Catalunha.
É evidente que a humilhação inflamaria a Catalunha, pelo que seria de esperar bom senso. Infelizmente isso é coisa que não tem reinado na monarquia vizinha.
Mariano Rajoy ficou orgulhoso pelo ataque de dia 1 de outubro e concluiu que o Estado de Direito tinha “desbaratado” o referendo.
É impossível ignorar o que isso significa.
No assalto à Catalunha, o governo de Madrid está apostado em continuar a desbaratar a democracia.
Apesar disso, não falta quem justifique Rajoy utilizando o argumento democrático, afirmando que a reclamação de autodeterminação perde validade quando é pretendida dentro de um Estado democrático.
O argumento ignora a história e a lógica.
O século XX já desmentiu a tese com exemplos de países que se emanciparam de democracias, e não consta que a Inglaterra e o Canadá não sejam Estados de Direito democráticos apesar dos referendos na Escócia e no Quebec.
Ignora também a lógica quando exige que um processo de autodeterminação da Catalunha se dê no quadro da legalidade constitucional do Estado que quer abandonar.
É simplesmente absurdo.
E não se trata de discutir se a Constituição pós-franquista de 1978 tem sido mãe ou madrasta para os catalães, como se fosse um problema de má consciência ou ingratidão. Apenas interessa se ela reconhece ou não o direito à autodeterminação e, no caso, não.
A Constituição espanhola foi ultrapassada pela vontade democrática do povo.
E não vale a pena berrar com o papel na mão, porque, boa ou má, nenhuma Constituição tem o poder de cristalizar a história a despeito da realidade das aspirações democráticas dos povos.
O direito de um povo a “determinar livremente sua condição política” é ele próprio fonte de legitimidade democrática, independentemente do quadro constitucional em que se realiza.
Por fim, há em toda esta história um profundo e irresponsável desprezo pela questão nacional catalã.
Trata-se uma identidade como se fosse uma birra contra o Estado central.
A questão nacional pode até ser manipulável, mas não se inventa a la carte.
A Catalunha é uma realidade social e política secular que, associada a outras questões, pode criar movimentos de ruptura com o Estado espanhol.
A insistência em fingir que se ignora este facto é responsável por grande parte do conflito que existe hoje na Catalunha.
Ao contrário do que diz a propaganda, sucessivos Governos do PP e do PSOE sempre tentaram reduzir a questão nacional a uma expressão cultural, recusando à Catalunha o direito a decidir sobre si própria e a sua relação com o Estado espanhol.
Foi assim que os catalães viram o seu Estatut[1] inutilizado pelo Tribunal Constitucional apesar de ter sido referendado na Catalunha com mais de 70% dos votos e já depois de ter sido aprovado em Madrid.
O paternalismo oficial que trata o sentimento nacional catalão como os pais tratam a rebeldia juvenil (“quando cresceres isso passa”) não é compatível com a bondade democrática com que agora pretendem reescrever a atitude do Estado espanhol.
Ao PP escorrega-lhe o pé para o sentimento quando insinua que podia acontecer a Puigdemont o mesmo que aconteceu a Companys, primeiro presidente da Catalunha fuzilado pelos franquistas.
Podem torcer o argumento democrático à vontade.
O espanholismo tem apenas uma razão.
Manuel Castells resumiu-a da seguinte forma: “La existencia de España, como la existencia de Dios, no se somete a votación.”
Funda-se aqui a minha divergência com quem se opõe ao processo de autodeterminação da Catalunha.
Espanha, como qualquer outro Estado soberano, não só tem de se submeter a votação como não pode usar a democracia como argumento para oprimir o direito democrático de parte do seu território.
Como disse alguém com piada, “cheguei à conclusão de que a Constituição espanhola é inconstitucional” porque rejeita o direito universal à autodeterminação.
É indiferente saber se eu defendo ou não a independência da Catalunha.
Estou do lado dos que aplaudiram o catalão que foi votar no referendo embrulhado numa bandeira espanhola.
Defendo o direito do povo catalão a decidir como expressão máxima da democracia e da liberdade.
É por isso que se expõe facilmente ao ridículo a tentativa do eurodeputado Francisco Assis de comparar a minha posição com a de Nigel Farage, líder da extrema-direita inglesa.
Quando submetemos direitos fundamentais às hipocrisias de conveniência damos por nós a desculpar os espancamentos de quem apenas queria votar e a repressão armada como resposta à vontade popular.
O que se trata aqui é de saber se a Europa (entendida como um conjunto de democracias) consegue conviver com os direitos democráticos dos povos ou se os vai desbaratar na repressão de processos como o da Catalunha.
Até agora os exemplos não têm sido brilhantes.
[1] O Estatuto de Autonomia da Catalunha é a norma fundamental do ordenamento jurídico catalão. Ou seja, o mais próximo a uma Constituição própria.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Deputada do Bloco de Esquerda
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