domingo, 22 de outubro de 2017

"Há aqui uma falha na governação do país"

Incêndios
Paulo Tavares
22 DE OUTUBRO DE 2017 03:20


























Entrevista a Domingos Xavier Viegas, coordenador do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra.

O relatório produzido aqui nesta casa sobre o incêndio de Pedrógão detetou uma série de falhas em diversos níveis do sistema: Proteção Civil, bombeiros, INEM, EDP, Ascendi, autarquias e chegaram até ao nível dos erros dos proprietários individuais. Escrevem mesmo que algumas mortes podiam ter sido evitadas e que podia ter sido evitado muito do sofrimento de quem ficou ferido. Tendo em conta que a maioria dos nossos leitores e ouvintes não leram detalhadamente o relatório, pode descrever brevemente o que se passou de errado naquelas horas para que acontecesse aquela espécie de fogo perfeito?
O que correu mal? Houve muita coisa que correu mal, eu diria que quase tudo correu mal e quando digo tudo não me refiro apenas aos aspetos operacionais para as quais as pessoas olham imediatamente e onde tentam encontrar responsabilidades. Por exemplo nos bombeiros, na Proteção civil, no comando ou na coordenação. Falhou muita coisa a montante e não podemos separar o evento de Pedrógão Grande do que se passou no dia 15. O incêndio de Pedrógão já foi uma coisa muito má, em que voltámos a dizer "nunca mais". Depois desse pesadelo ainda tivemos o 15 de outubro. Creio que não podemos separar uma coisa da outra...

Mesmo sem ter tido tempo para fazer um estudo académico sobre o que se passou no dia 15, vê empiricamente uma repetição de erros em relação ao que se passou em Pedrógão?
De certo modo sim. Mas, quando falo de erros falo de toda a sociedade. Ou seja, se olharmos hoje à nossa volta, se percorrermos os espaços agrícolas, os espaços rurais e florestais encontramos realidades que estão propícias, prontas a que volte a acontecer o mesmo desastre. Veja as casas, o tipo de construção, nas encostas, no cimo de desfiladeiros, etc. Portanto, enquanto não mudarmos muita coisa e quando digo "muita coisa" começo pelas pessoas, porque eu há muito tempo que digo que o sistema que se diz agora que está errado assenta em três pilares: o instituto de Conservação da Natureza, a Autoridade da Proteção Civil e a GNR - são estes os pilares do sistema de defesa da floresta contra incêndios -, mas falta um quarto pilar, que é o pilar da população, da comunidade, o pilar das pessoas...

...isso significa formação?
Não só. Significa olhar para esta gente, dar-lhes preparação, dar-lhes condições para que saibam o que devem fazer ou não devem fazer em caso de incêndio, para saberem defender-se, para evitar todas estas situações de saírem para a estrada, irem à procura de qualquer coisa, irem salvar as máquinas, irem ver se um armazém está em condições ou não. As pessoas têm que reconhecer que, ou fizeram algo para proteger essas instalações em devido tempo - e temos que ver que essa proteção pode não ser eficaz em condições como as que tivemos nestes dias -, mas sobretudo pensarem que a vida delas é mais valiosa. Não devem criar ainda mais problemas para todo o sistema se se meterem em trabalhos, devem cuidar de si e salvaguardar-se. A seguir a Pedrógão, nós demos um conselho às pessoas: é preferível ficar em casa. Lembro-me que fomos quase crucificados por isso. Houve pessoas que vieram dizer que estávamos a por a culpa nos mortos, nas pessoas que saíram de casa e que morreram. Mas é esse o conselho que temos que dar e é esse o conselho que falta. São conselhos simples. Se a pessoa ficar em casa, não só tem mais possibilidade de sobrevivência como, se tiver possibilidades de defender a casa, pode salvar a casa. E vimos isso outra vez no dia 15. Mas, perguntavam o que falhou. Logo no início desse incêndio, quanto a nós houve um conjunto de percalços na coordenação do incêndio por parte do comando de Leiria. Houve uma circunstância em que o comandante distrital não estava disponível por questões pessoais, aceitáveis. E depois não houve, talvez por esse motivo, o suficiente apelo para meios fortes para combater esse incêndio. Houve a simultaneidade de vários outros incêndios, a começar quase à mesma hora, na mesma região e houve a dispersão de meios e de recursos. Talvez não tenha havido também um bom discernimento dos vários escalões da estrutura da avaliação do que era mais ou menos relevante e, na nossa opinião, foram alocados meios excessivos para algumas ocorrências, retirando-as daquela que veio a tornar-se a mais gravosa, a origem de Escalos Fundeiros. Houve outro foco de incêndio, em Regadas, uma hora depois, que passou despercebida a muita gente, que o sistema operacional ignorou, que não foi reportada como uma nova ocorrência, o que daria a possibilidade de alocar novos meios, porque era um novo incêndio que estava a nascer. Verificamos que houve meios que estavam a ser usados em incêndios ali próximos e que não foram usados em devido tempo. O incêndio de Escalos, aquele com efeitos mais destrutivos e que, no limite, foi o que causou mais vítimas mortais, tanto quantos nos foi dito pelos operacionais, era um incêndio difícil mas que podia ser controlado ao fim de umas horas se houvesse recursos.

Um ataque forte de início...
Um ataque forte, com meios, com recursos humanos e mecânicos suficientes. Enfim, houve várias dificuldades nesse ataque e não foi controlado a tempo. A partir de uma determinada hora, por volta das 18 horas, aconteceu um fenómeno que felizmente não é muito comum nos incêndios em Portugal. Pessoalmente não tinha conhecimento doutros casos. Foi a aproximação de uma trovoada. Essa trovoada, que estava prevista e que o IPMA seguiu e que tivemos oportunidade de estudá-la com muito detalhe, quando entrou na zona do incêndio - visível por imagens de satélite e de radar - modificou o campo de ventos. O vento mudou de direção e começou a aumentar de velocidade. A partir daí o incêndio tornou-se incontrolável. Esse foi um dos aspetos que correu mal ao início. Depois, houve aquele período muito grave entre as 18h/19h e as 21h em que se deu a maior parte dos acidentes mortais e a partir daí deu-se um colapso do sistema de comando. E por razões que se compreendem, por razões emocionais logo que se começou a saber da existência de mortes. Percebeu-se que o próprio socorro às vítimas não funcionou naquilo que, na nossa opinião, devia ter sido o seu papel. Não estou a por a culpa em ninguém, porque admito que as condições tenham sido extremamente difíceis, mas seria desejável que tivesse havido um serviço de busca, de socorro e de salvamento que fosse à procura de feridos, que se sabia que havia, coisa que algumas pessoas fizeram a título individual, por conta própria lançaram-se nas suas viaturas a socorrer feridos queimados e a levá-los para onde quer que fosse.

Das muitas entidades com responsabilidades e que são identificadas ao longo do relatório, quer no de Pedrógão quer na tragédia de fogos que tem atingido o país, qual é que identificaria como a principal? A parte mais política, a das autárquicas, a Proteção Civil, os bombeiros? Qual é aquela que terá particulares responsabilidades?
Quando estudamos estes incêndios e ao fazer este relatório, fazemo-lo como técnicos, porque somos cientistas, investigadores. Procuramos dar a conhecer ao país a verdade tal como nos é dada a conhecer. Mas também não podemos tirar a nossa condição de cidadãos, de pessoas que observam realidade. Começamos o capitulo das conclusões com uma referência à governação do país e quando refiro a governação não quero entrar em questões partidárias. É uma questão sistémica, que atravessa o país há dezenas de anos. Aquilo que verificamos, ao andar no terreno e posso assegurar que este relatório é feito de muito trabalho no terreno. Eu próprio andei muito no terreno, durante três meses falei com literalmente mais de uma centena de pessoas, perto de duzentas. Percorremos muitos lugares, fui a todos os lugares onde houve perda de vidas. E o que encontramos? Um país que está à margem do país que é imaginado em Lisboa. Estamos a uma pequena distância do mar - não se pode falar do interior -, a pouca distância de vias principais e encontramos aldeias que não têm saneamento, casas que não têm água corrente, sem água quente em casa. Como é que estas pessoas, com rendimentos tão baixos e que vivem do que cultivam, como é que é possível esperar que estas pessoas façam o trabalho de limpeza das florestas? Há aqui uma falha na governação do país, na distribuição relativa da riqueza. Nós queremos o nosso espaço rural e florestal cuidado. Queremos que tenha pessoas para não ser um matagal, mas temos que dar condições às pessoas. Esse é o primeiro momento crítico, de que falámos e que é transversal a muitos governos.

E que levará anos a corrigir...
Certamente e por isso mesmo já devia ter começado.

Até porque o diagnóstico em termos académico-científico está mais que feito.
Exato. Não compreendemos como é que estas pessoas são postas à margem em todo este processo. Já vimos a dizer isto há muito tempo. Não pode ser o governo a dizer: "há estas três entidades que são mais ou menos fortes que irão resolver o problema". Não têm resolvido e não irão resolver enquanto não trouxermos toda esta gente para este problema. E quando digo toda esta gente refiro-me aos autarcas, às empresas, à comunidade cientifica, que tem sido posta de parte e marginalizada em todo este processo. Os autarcas? Naturalmente sim. Tenho muita relutância em aceitar que muitas responsabilidades de todo este processo da defesa da floresta tenha sido atribuído às autarquias. Aceitaria isso se houvesse verdadeira tutela que acompanhasse o trabalho dessas pessoas. Aquilo que observamos é que isto está entregue a autarcas que podem ter mais ou menos sensibilidade para o problema...

Mais ou menos meios...
Mais ou menos meios... E que fazem a sua atividade conforme a sua sensibilidade. Verificamos, por exemplo, que nesta área ardida houve dois concelhos, Pedrógão e Castanheira de Pera, que não tinham planos de municipais de defesa de floresta aprovados.

Admite que isso que aconteça noutros concelhos do país?
Naturalmente, e isso para mim é uma omissão muito grave e que neste incêndio terá tido consequências e no pós incêndio certamente está a ter.

Falou da necessidade de dar formação à população. Vê essa necessidade também para os autarcas?
Naturalmente. Não pretendo que todos os autarcas sejam especialistas em incêndios, especialistas em proteção civil.

Mas que tenham pelo menos sensibilidade para o tema...
Sim, têm que ter. Eles têm um gabinete técnico florestal, alguns têm gabinete técnico de proteção civil, mas aquilo que me parece é que os técnicos desses gabinetes não têm a formação devida para poderem ser uma força articulada em cada município. Porque aí também encontramos competências e sensibilidades diferentes em diferentes locais e, muitas vezes, uma subordinação à autoridade do presidente da câmara que determina que as coisas sejam num sentido ou noutro. Vamos ver o que se passou em Pedrógão Grande: ao não terem plano municipal de defesa florestal contra incêndios, este município fica inibido de receber verbas do Estado para ações de prevenção. Quando perguntamos ao presidente da câmara o que foi feito, ele diz "fizemos isto, aquilo, mas não havia dinheiro para mais". E perguntamos: "mas, como queria ter dinheiro se não têm plano aprovado"? Vamos ter com a Ascendi, entidade gestora das estradas e que devia cuidar da limpeza das faixas em torno das rodovias e essa empresa escuda-se no facto de não haver plano municipal de defesa das florestas nesses dois concelhos. E está dito na lei que esses trabalhos de gestão de combustíveis são obrigatórios no plano municipal. Se não há plano, estamos neste beco.

No rescaldo do grande incêndio de Tavira de 2012 produziu-se um trabalho semelhante, saíram desta casa conselhos muito práticos sobre a forma como o sistema de proteção civil devia ser afinado pata melhorar aqui e acolá... Houve alterações depois desse incêndio?
Houve sim senhora. Temos a satisfação de ver que algumas das nossas propostas têm sido acolhidas, já em 2012, 2013 e esperamos que agora também. Esta questão da preparação para os grandes incêndios, por exemplo. Em 2012, nesse incêndio, havia um desconcerto completo. Após isso, a proteção civil juntamente com a Escola Nacional de Bombeiros promoveu cursos e formações para preparar equipas nos postos de comando para acudir aos grandes incêndios. A partir daí, encontramos em todos os grandes incêndios pessoas preparadas, que quando estavam cansadas tinham que ser revezadas e já havia planeamento para essa renovação da equipa. Melhorou-se bastante...

Mas ainda falta fazer muito.
Falta fazer muito. Por acaso também tínhamos dado esse conselho de não haver perturbações no posto de comando. Que se criasse numa zona ao lado do posto de comando um espaço onde pudessem receber visitas, entidades, onde pudesse haver reuniões com autarcas...

Coisa que não aconteceu.
Não aconteceu. Em 2013 referimos as deficiências da formação de bombeiros na parte de segurança, as deficiências nos equipamentos e isso foi corrigido. Neste processo, podemos orgulhar-nos de termos trazido alguns contributos para o problema e um deles é o problema da segurança os bombeiros. Estou convencido que, neste momento, essa é uma batalha ganha. Repare que em toda esta tragédia tivemos a morte de um bombeiro e desde 2013 têm morrido poucos bombeiros. Claro que há casos de queimaduras, acidentes com viaturas, mas não são os acidentes do passado.

Tendo em conta a reunião do conselho de ministros, o que é que não se pode deitar fora com água do bebé e o que é não temos e temos que ter na política florestal ou de ordenamento do território a nível florestal na legislação que possa vir a ser produzida.
A primeira coisa que acho que qualquer novo sistema de defesa da floresta conta incêndios deve ter é o envolvimento explícito dos representantes da população.

Que não necessariamente só os autarcas.
Não necessariamente só os autarcas, toda a sociedade. Tem que haver uma forma de englobar essas entidades, essas pessoas. É por isso que preconizamos um plano nacional. O relatório da comissão técnica fala de uma agência ou algo assim. Nós não chegamos ao ponto de criar uma nova entidade ou apontar nomes de quem deve ser. Os meus colegas da comissão técnica vão ao ponto de dizer que devem ser engenheiros florestais, nós não vamos a esse ponto. Mas deve haver alguma entidade que aproveite o que há de bom no sistema mas que lhe acrescente essa valência que seja o envolvimento de toda a população.

Isso poderia decorrer paralelamente ao papel dos autarcas e aos planos locais de que falava há pouco?
Naturalmente.

Potenciando-os ou anexando-os a uma nova entidade que os pudesse gerir de uma forma mais direta?
Provavelmente anexando-os, porque tem de haver alguma coisa externa e acima dos autarcas. Por muita competência que tenham, são ciclos, são eleitos três, quatro anos e depois não se sabe o que vem a seguir. Este é um programa que tem que ter continuidade. Dou-lhe um exemplo: o ICNF tem a seu cargo o plano das infraestruturas de proteção, a rede de corta-fogos de 120 metros. Há uns anos, o ICNF delegou essa competência nas autarquias. O que assistimos, pelo menos desde 2012? No Algarve havia um plano feito de faixa de rede primária mas faltava executá-lo. Estavam feitas umas partes desse plano pelo ICNF, mas quando passou para os autarcas foram feitos uns bocaditos. Quando estudamos o incêndio de Tavira, em 2012, verificamos que na área percorrida pelo incêndio era preciso fazer 50 a 60 quilómetros dessa faixa e estavam feitos 20. Era o mesmo que irmos na autoestrada de Lisboa para Santarém ou Leiria, são cem quilómetros, e o autarca de Alenquer, por exemplo, tinha feito um bocado, outro tinha deixado de fazer. Como é que chegávamos a Leiria? É essa a realidade que encontrámos por esse país fora. Falta uma entidade que supervisione isso. Não basta dizer que estão aos autarcas, que estão as empresas, que estão as universidades...

Tenho-o ouvido a fazer uma comparação com a questão dos acidentes rodoviários. Vê esta entidade a ter um papel semelhante ao da Prevenção Rodoviária Portuguesa, até com financiamento de várias fontes?
Absolutamente. Penso que a batalha da segurança dos bombeiros está ganha. Felizmente para o país, a batalha dos acidentes rodoviários está muito bem encaminhada. Para mim é um exemplo. Quando há uma vontade, quando há uma liderança, uma determinação para resolver um problema consegue-se fazê-lo. Julgo que é isso que falta em relação aos incêndios no nosso país. Há pessoas que olham para a floresta como cifrões, outros que veem outros aspetos quaisquer de paisagem, de ecologia, de desenvolvimento turístico, mas falta olhar para isto como um todo, para uma realidade que tem um risco sério de incêndio florestal. Parece-me que as pessoas programam as florestas como se não houvesse incêndios, as próprias plantações são feitas dessa maneira.

Voltando um bocadinho atrás, com um olhar um pouco mais fino, até porque o relatório revela que passaram por aí. Quer o vosso relatório quer o da comissão independente nomeada pelo parlamento apontam para falta de limpeza da EDP em torno das linhas de média tensão. Se não estou em erro, o vosso relatório diz que os dois fogos que tiveram na origem do incêndio de Pedrógão nasceram do contacto das árvores com as linhas. Acha possível a EDP vir a ser responsabilizada pelo que aconteceu em Pedrógão?
Isso não está na nossa mão. O que nos competia era dizer o que encontramos. Fizemos isso com base em dados técnicos. Eu sou engenheiro, mas sou engenheiro mecânico, chamei um colega para a minha equipa de eletrotecnia, porque é exatamente essa a área. Escudei-me num colega mais competente no assunto que eu, tivemos uma reunião com a EDP em Lisboa e chegamos à conclusão que tínhamos que pedir outros dados. Esses dados vieram, analisamos, fomos até à subestação da Lousã, que é de onde sai a linha que alimenta esta área e fomos esclarecidos de mais elementos. E dissemos aos técnicos da EDP, com toda a franqueza e com toda a transparência, que tínhamos essas suspeitas. Fico surpreendido que digam agora que o relatório causou uma grande surpresa porque uma das nossas preocupações é a de agir com lealdade. Não estamos a esconder coisas às pessoas e quando queremos dizer algo, principalmente se for mau, confrontamos cada entidade com essa proposta de conclusão que estamos a tirar, para que a entidade, se o desejar, poder responder. No caso da EDP foi a mesma coisa. Apresentámos as nossas suspeitas e demos à EDP a oportunidade de responder. Deram-nos respostas mas não foram suficientes para que não mantenhamos esta posição.

A Polícia Judiciária terá feito mal por ter dito logo no dia a seguir ao incêndio que a culpa era de um raio, algo que é praticamente descartado do vosso relatório?
Não critico a Polícia Judiciária. Nós trabalhámos muito de perto com a PJ também neste aspeto da ignição. Quando começámos o trabalho tínhamos todas as hipóteses em aberto. Aliás, alguém me terá ouvido no início deste processo a partilhar a hipótese de ter sido uma trovoada, mas o IPMA pôs logo de parte essa hipótese e nós acolhemos. Vimos em detalhe o que o IPMA fez para analisar as descargas e estamos muito pouco convictos de que tenha sido um raio a causar qualquer um destes incêndios. A partir daí consideramos outras hipóteses: fogo posto, algum pirómano, algum meio aéreo. Pelos testemunhos de quem estava lá e havia gente a 500 metros do local de ignição, o local onde começou é de passagem, é uma estrada onde alguém que passasse podia ser visto. O ponto onde começou, de facto, não seria o ideal para por um incêndio. E fizemos trabalho de campo. Verificámos que há várias árvores em que há contacto com a rede elétrica. Falámos com guardas florestais, nomeadamente com o SEPNA, que subiram à árvore e que viram cabos dessa linha com sinal de estarem chamuscados por estarem em contacto com a vegetação.

Tivemos o incidente de Regadas, a três quilómetros, e aí há um testemunho pessoal de alguém que viu o incêndio começar debaixo da linha. Parece-nos que são coincidências a mais. Além disso temos imagens de drones e de helicóptero que tiramos há poucos dias e que são visíveis os sinais do início do incêndio. Quem analisa incêndios florestais e analisa sobretudo a sua fase inicial percebe facilmente como é que o incêndio se começa a desenvolver, começa a ganhar intensidade e a partir de onde sai. Há indícios claros, quer num caso quer no outro, de que o incêndio tenha começado naquela área e, muito provavelmente, por contacto entre a linha aérea e a folhada.

Admite que esse cenário se possa repetir noutras áreas do país?
Absolutamente. Não sei até mesmo se no dia 15 de outubro, com o vendaval que tivemos, se não terá acontecido o mesmo. Não tivemos tempo de analisar esse caso, mas pelo que tenho estudado no passado de situações destas... eu compreendo que não é fácil manter estas não sei se centenas ou milhares de quilómetros de linha elétrica por todo o país. Temos um país eletrificado e isso é bom, mas temos também este preço que estamos a pagar. Isso implica haver um maior investimento no cuidado dessas proteções . Receio que não tenha sido feito o investimento necessário.

A propósito de investimento e vamos falar agora da forma como o sistema funciona e sobre aquilo que estará em cima da mesa para o redesenhar e pegando no caso da Galiza e de Espanha. A Galiza teve um ano terrível de incêndios em 1989, creio eu, e logo nessa altura foi criada uma estrutura própria, autónoma, no governo regional, com orçamento próprio para tratar não só da prevenção mas também do combate. Houve ainda uma profissionalização do combate aos incêndios. Espanha gasta anualmente dois mil milhões de euros apenas no combate. Nós andamos na ordem das poucas centenas de milhões. É altura de começar a olhar para isto de uma forma mais séria e quando digo séria é orçamentalmente séria e deitar dinheiro para cima do problema?
Claramente é necessário investir mais dinheiro. Concordo que a Galiza fez esse esforço e conseguiu reduzir, mas não podemos ir atrás dessas medidas isoladas, porque podem ser bem sucedidas durante anos, mas podemos apanhar um ano catastrófico como este e as coisas irem-se abaixo. Lembro que no nosso país, há uns anos, foi criada uma comissão chamada CNEF, Comissão de Fogos Florestais, que deu a volta ao processo. Não estou a sugerir que seja ressuscitada essa comissão, mas é nessa linha que vão as nossas propostas, que haja alguma entidade que supervisione, que congregue esforços, que coordene todo o trabalho de prevenção e combate.

Via como útil ter uma estrutura hierárquica mais verticalizada, mais próxima daquela que é a estrutura de um exército em combate? Falo aqui apenas do momento do combate, não da prevenção...
A ANPC já propõe essa estrutura. Admito que, talvez por falta de uma estrutura formativa... vamos a ver, nessas forças como a GNR, as forças armadas, têm uma academia e os oficiais passam por essa academia. Os bombeiros não têm isso. Pode ser comandante de bombeiros quem tem apenas uma experiência de alguns meses como bombeiro.

Não têm formação de liderança...
Absolutamente. Penso que falta em todo o sistema essa capacidade de dar formação aos nossos bombeiros. Por exemplo, uma academia de bombeiros que existe noutros países e que podia formar esses tais quadros superiores que dessem mais solidez a todo o processo.

Há um esboço disso aqui perto, na Lousã ...
Sim, a Escola Nacional de Bombeiros, mas que forma até ao nível de comandante, dai para cima não temos nada.

Ao longo destes anos e há 30 que dedica boa parte do seu tempo a esta temática, falhou mais a prevenção ou mais o combate.
Aquilo que tenho visto é que o combate tem melhorado, tem feito o seu trabalho.

E não há sinais que isso aconteça no lado da prevenção.
Não, pelo menos na parte das florestas e de tudo o resto que falámos hoje: autarquias, comunidades... aí tem havido falhas muito grandes.

E nos corpos de bombeiros, a sua profissionalização, deveria permitir que participassem na prevenção, vulgo na limpeza, no ordenamento, ou que fossem uma espécie de entidade fiscalizadora?
Eu defendo que deva haver mais profissionais nos bombeiros. Mas estamos a esquecer uma força que temos no terreno, que são os sapadores florestais, esse sim são profissionais, são full time. Vivem na floresta, estão dedicados às florestas e que deviam fazer esse trabalho. Não há necessidade de inventar novas coisas. Quanto a mim esses sapadores não estão é bem organizados, bem enquadrados, bem formados. Mas, se os bombeiros trabalharem em conjunto com eles, podia potenciar-se tudo isto. Não é preciso pôr os bombeiros a fazer limpeza, já temos os sapadores, mas podem-se por os bombeiros a trabalhar em conjunto, a fazer, por exemplo, fogos controlados, sensibilização das populações, um trabalho que falta muito fazer. Ouço defender que se criem bombeiros florestais, de combate ao incêndio florestal. Conheço essa figura noutros países, mas tem sido uma confusão tremenda. Imagine o que seria ter um incêndio no nosso país, onde há casas por todo o lado. Quando o fogo tivesse a chegar ao pé das casas, "venham cá os bombeiros urbanos". Neste momento nós temos bombeiros que fazem tudo, que têm capacidade, têm treino. Não temos que trazer uns, meter outros. Quando não combatem o fogo na floresta é porque o fogo não pode ser defendido por uma questão de segurança. E se não é combatido por eles, dificilmente será combatido por outras pessoas. Pergunto: se havia necessidade de fazer esses bombeiros florestais, por que não foram feitos? O que impediu qualquer entidade de criar bombeiros que combatessem o fogo florestal.

Tem insistido muito na tecla da sensibilização das populações. Há uma entidade que tem andado muito no terreno, o Presidente da República, que tem estado num contacto muito forte com as populações. Como tem visto o papel do presidente nestes dias?
Tem sido extraordinário, tem superado aquilo que se poderia esperar. Não sou comentador político, mas diria que este é um dos momentos altos desta presidência da República. Está a mostrar uma sensibilidade muito grande para com o problema, está a mostrar aos portugueses que eles existem, que não podem ser marginalizados como têm estado a ser e, neste caso, que alguém vai ter que olhar para eles.

Espera ver nesta atitude do presidente uma espécie de motor de arranque para o tal plano que é necessário fazer?
Espero que sim, porque é o que tenho visto falhar ao longo destes anos.

A vontade política...
Tenho visto falhar a vontade política, tenho visto faltar alguma liderança que vá por esse caminho. Tem havido picos, mas nada de continuidade.

* Com Arsénio Reis (TSF)

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