sábado, 9 de junho de 2018

Senhoras e senhoras. Eis Leônidas, o homem que mostrou o pontapé de bicicleta ao mundo

MUNDIAL 2018
Tiago Oliveira
19.04.2018 às 8H00
Leônidas (à esq.) a marcar um dos três golos com que brindou a Polónia num jogo que terminou com uma vitória po 6-5 dos brasileiros
O "diamante negro" deu nome a uma barra de chocolate, fez sucesso com as adeptas francesas e converteu-se numa das primeiras estrelas de dimensão global no França 1938. De tal modo que um árbitro não sabia se o seu pontapé de bicicleta era contra as regras ou não (Esta é a terceira história na nossa nova série enquanto Portugal não entra em campo no Mundial da Rússia)


Haverá poucos gestos mais icónicos no futebol e com tanta capacidade de deixar as pessoas boquiabertas do que um bom pontapé de bicicleta. 
Que o diga Zinedine Zidane, por exemplo, quando ficou embasbacado com a nota artística de Cristiano Ronaldo e o seu tento que voltou a pôr todos a falar dos melhores lances do género da história. 
E a quem temos a agradecer a fama deste elástico movimento de pés e braços? Leônidas da Silva.

O "diamante negro" ou "homem elástico", como ficou conhecido para a posteridade, foi o grande responsável por fazer do pontapé do bicicleta algo tão popular e, para os primeiros que o viram, algo que desafiava as leis da física e da gravidade. 
Um pioneiro que foi a primeira super estrela brasileira, um dos primeiros nomes verdadeiramente globais do futebol e um homem que enfrentou com uma bola no pé os preconceitos raciais da época. 
E que teve no França 1938 o seu grande palco.

Não foi um percurso fácil, desde as favelas do Rio de Janeiro até ao topo do futebol mundial. 
Avançado centro diminuto mas com uma velocidade e uma agilidade que lhe permitiam estar sempre no sítio certo à hora certa, Leônidas teve uma ascenção meteórica. 
Na década de 30, em poucos anos, passou do São Cristovão para os gigantes como o Peñarol (no Uruguai), ou o Botafogo. 
Pelo meio, ainda foi ao Mundial 1934, mas sem o peso mediático e desportivo que alcançaria quatro anos depois.

Foi por esta altura que terá começado a treinar o movimento que ganharia a alcunha de pontapé de bicicleta. 
Para muitos, terá sido mesmo o inventor e, se é certo que não deveríamos deixar um facto meter-se no meio de uma boa história, não existem dados históricos que permitam comprovar essa asserção com 100% de certeza (as fontes mais fiáveis dizem que os primórdios do gesto estarão pelos finais do séc. XIX na América do Sul, entre as comunidades que conheceram o futebol por intermédio dos imigrantes ingleses). 
Ainda assim, ninguém lhe tira a fama como o homem que deu a conhecer esta arte ao mundo, assim como o seu primeiro grande mestre.

A primeira ocasião documentada em que o terá utilizado remonta a 24 de abril de 1932 e cedo a sua fama começou a levar multidões ao futebol na esperança de apanhar o lance que parecia saído das lendas de magia. 
De tal modo se tornou um ícone que quebrou a barreira racial e conseguiu ser contratado pelo Flamengo, então famoso pelo seu estatuto elitista branco. 
Por tudo isto a sua presença no terceiro Mundial tinha tudo para ultrapassar a de um mero jogador.

E assim foi. 
Numa competição onde Uruguai e Argentina não viajaram para França em protesto pelo segundo Mundial consecutivo na Europa, o Brasil foi o grande representante sul-americano numa altura onde os canarinhos (que então ainda não jogavam de amarelo) ainda não eram o sinónimo de futebol que hoje encarnam. 
Cartel que podem agradecer em parte a Leônidas, que se destacou logo no primeiro jogo a caminho de se tornar o melhor marcador do torneio, naquele que é um dos grandes clássicos da história dos mundiais.


Do outro lado estava a Polónia para o jogo de "mata-mata" (uma vez que não havia fase de grupos) que vendeu muita cara a derrota. 
O resultado foi de 6-5 (não, não é resultado de desempate por grandes penalidades), numa partida imprópria para cardíacos que contou com muitas reviravoltas no marcador, um campo cheio de lama, tempo-extra, e um hat-trick de Leônidas que saiu em ombros perante o entusiasmo geral.

Foi o início da fama do brasileiro que haveria de explodir na ronda seguinte. 
Seguiram-se mais dois golos frente à Checoslováquia (em dois jogos) na eliminatória em que mostrou ao mundo o pontapé de bicicleta. 
Segundo reza a lenda, o árbitro terá ficado tão estupefacto que não sabia se o que tinha acabado de ver estava de acordo com as regras do jogo ou não. 
Desta feita, não vamos deixar os factos intrometer-se no meio de uma boa história.

A eliminatória deixou mazelas físicas em Leônidas que terá saído a coxear de um jogo que levou Raymond Thourmagem a escrever para o "Paris Match" que, "esteja na terra ou no ar, o homem borracha tem um dom diabólico para controlar a bola e disparar tiros indefensáveis quando menos se espera. 
Quando ele marca, tudo parece um sonho." 
Aura que também passou para as adeptas francesas, segundo consta, que não perdiam uma oportunidade de meter conversa com a estrela que, pelo seu lado, não desprezava de todo a atenção.
A grande estrela do teatro de burlesco "Folies Bergère", Mistinguett, terá ficado encantada com a passagem por França do "diamante negro"

Numa ocasião, terá visitado o famoso teatro do burlesco "Folies Bergere" onde após o espetáculo foi convidado aos bastidores para conhecer a estrela, Mistinguett. 
Após a entrada no camarim, as atenções dos presentes viraram-se para ele, o que fez a artista sair para regressar com ainda menos do que tinha vestido anteriormente e dizer "claro que aceito o seu convite para jantar, querido". 
Leônidas não tinha convidado, mas aproveitou a oportunidade e ganhou uma fã. 
As artistas não perderam um jogo seu até ao final do Mundial.

Competição em que o "diamante negro" acabou por não agraciar a final porque, confiantes na sua superioridade, os brasileiros pouparam-no para o jogo das meias-finais. Saíram derrotados pelos eventuais bicampeões Itália e tiveram que se contentar com a disputa pelo terceiro lugar, com Leônidas a marcar mais dois golos e a ganhar o troféu para melhor artilheiro do torneio com sete tentos.

A fama global de Leônidas - que no seu país natal levou à criação do chocolate "diamante negro", ainda hoje um produto de grande sucesso - acabaria por ser cortada precocemente com o eclodir da II Guerra Mundial e o interregno dos mundiais por 12 anos. 
O avançado continuou a sua carreira pelo Brasil, onde após ter passado oito meses na prisão por ter falsificado documentos para escapar ao serviço militar obrigatório, ingressou no São Paulo onde acabou o seu percurso como jogador e chegaria a ser treinador.

Seria depois comentador e, mais tarde, dono de uma loja de mobília, longe dos olhares curiosos. 
Com o gesto gravado na memória coletiva que levou uma geração de milhões a apaixonarem-se pelo futebol e ganhou quase vida própria. 
Certo, Cristiano?

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