O Milagre de Berna ou o improvável nascimento de uma potência
MUNDIAL 2018
Tiago Oliveira
03.05.2018 às 8H00
A seleção alemã celebra a improvável vitória por 3-2 frente à favorita Hungria no Mundial de 1954 na Suíça, um jogo que ficou conhecido como o Milagre de Berna
Numa cena da clássica série de comédia britânica "Sim Sr. Ministro", Sir Humphrey Appleby está a explicar ao epónimo ministro o porquê da entrada de certos países na então Comunidade Económica Europeia.
Chegado à Alemanha, afirma estarem à procura "de readmissão na raça humana" após o seu papel na II Guerra Mundial.
E se tal visão ainda era comum no início dos anos 80, mais ainda em plena ressaca do conflito.
Era uma nação dividida (literalmente) em duas que teve no futebol o início de uma redenção com os outros e consigo mesmo.
Graças ao Milagre de Berna e frente a uma seleção húngara que ninguém esperava que perdesse.
Nos anos 50 a Europa ainda tinha nos escombros e no racionamento uma uma lembrança diária da guerra e foi por isso, sem surpresa, que quando a FIFA procurou organizar um novo nundial no Velho Continente, um dos poucos países poupados pela carnificina tenha sido o escolhido.
Sede da organização que celebrava o seu 50º aniversário, a Suíça foi nomeada como o palco da quinta edição da competição.
SORTEIO PARA APURAR
Foi o primeiro Mundial a ser alvo de transmissões televisivas e que marcou a estreia de países como a Coreia do Sul ou a Turquia que se apurou por sorteio.
O que quer isto dizer?
Exatamente o que parece.
Passamos a explicar: após dois jogos com a Espanha que acabaram empatados, realizou-se um terceiro jogo em Roma para definir quem ia à fase final.
O encontro também terminou empatado o que - numa altura em que ainda não tinha sido inventado o desempate por grandes penalidades - obrigou a FIFA a recorrer a um método geralmente reservado para colocar as equipas nos grupos.
Desta forma, num palco e em recipiente improvisados, Luigi Franco Gemma (filho de 14 anos de um dos funcionários do estádio) foi escolhido para tirar um de dois papeis de dentro da Taça Jules Rimet (atribuída ao vencedor do Mundial).
Calhou a Turquia, o que obrigou a Espanha dizer adeus à competição.
E se pensam que este método é uma relíquia do passado, ainda em 2014 esteve próximo de ser utilizado quando havia hipótese de Irão e Nigéria estarem iguais nos seis critérios de desempate.
Mas voltemos à Alemanha, neste caso representada pela então RFA (República Federal Alemã, também conhecida como Alemanha Ocidental).
Só após 1950 tinham sido readmitidos na FIFA e eram olhados com desconfiança por grande parte dos seus congéneres.
O selecionador, Sepp Herberger, tinha escapado incólume aos julgamentos de desnazificação, apesar de ter sido um membro do partido desde os anos 30 enquanto o capitão, Fritz Walter, tinha escapado a uma deportação para a Sibéria por alguém o ter reconhecido como futebolista num campo de trânsito.
Era um conjunto de amadores no qual poucos depositavam esperanças, ainda muito distante dos dias do "futebol são 11 contra 11 e no final ganha a Alemanha."
ESTRATÉGIA OU SÓ POUPANÇA?
Sobretudo quando no seu grupo tinham aquela que era considera a melhor equipa da época e uma das melhores de sempre, a Hungria de Puskas ou Kocsis.
Os "poderosos magiares" ou "equipa dourada", como eram alcunhados, não conheciam a derrota há quatro anos e 31 jogos, tinham entre os escalpes uma vitória por 6-3 sobre a Inglaterra (na primeira vez que os ingleses perderam em solo caseiro) e eram os campeões olímpicos em título.
Conhecidos pelas suas inovações táticas, percursores do futebol total dos holandeses, eram favoritos não só a vencer o Mundial como quase a cilindrar a oposição.
O que começaram por fazer, com uma vitória por 9-0 frente à Coreia do Sul.
Seguiu-se um confronto com a Alemanha, mas ainda não era hora do milagre.
Sabendo que podia perder porque tinha o play-off de passagem à fase a eliminar assegurado, e numa opção tática ainda hoje muito discutida (para perceber se queria poupar ou esconder a sua real força do adversário), Sepp Herberger mudou mais de metade da equipa e prontamente perdeu por 8-3.
Uma sensação de falsa segurança que nem a lesão de Puskas (que só voltou a jogar a final e não a 100%) ajudou a mitigar.
Ambas as equipas apuraram-se e, com maior ou menor dificuldade - sobretudo a Hungria, que teve alguns jogos de grande dificuldade, ao contrário dos germânicos com um sorteio mais simpático - ultrapassaram as eliminatórias até marcarem novo encontro a 4 de julho de 1954 para a final de Berna.
Agora sim, era hora do milagre.
Além do espírito de equipa e de umas inovadoras chuteiras com pontas de ferro adaptáveis inventadas por Adi Dassler (fundador da Adidas) pouco mais se poderia atribuir de vantagens aos alemães, que cedo se viram a perder por 2-0 aos oito minutos e pareciam completamente perdidos em campo.
Agora sim, foi a hora do milagre.
Aos 18 minutos já a Alemanha tinha recuperado da desvantagem perante a surpresa geral e com os adversários atónitos.
Seguiu-se um período de domínio da Hungria que durou praticamente durante todo o jogo, com o guarda-redes Toni Terek a fazer várias defesas de recurso.
Até que, quando nada o fazia prever, Helmut Rhan se tornou o herói da reconciliação de um povo consigo e com os outros.
Quando faltavam seis minutos para os 90, encheu-se de fé e rematou de fora da área para aquele que é considerado o golo mais importante da memória coletiva germânica.
Puskas ainda viu um golo anulado por um fora de jogo questionável, mas estava consumado o Milagre de Berna perante o delírio dos alemães no estádio e que assistiam pela televisão.
Foi o início da aura que fez dos germânicos uma das potências mais temidas dos Mundiais, presença regular em finais e detentores de quatro troféus.
Ao passo que os "poderosos magiares" nunca mais foram os mesmos e a inesperada derrota provocou ondas de choque e manifestações de descontentamento pelo país que, apenas dois anos mais tarde, se viu envolvido numa revolução e invasão soviética.
Exposição alemã a comemorar os vencedores de 1954 com a bola da final ao centro
Já na RFA, a reação e o impacto foi diametralmente oposto.
"Só nos apercebemos do que nos esperava quando regressamos.
Só quando atravessamos a fronteira", recordou ao "Der Spiegel", Horst Eckel, jogador da equipa.
O comboio mal conseguiu avançar com a multidão posicionada ao longo da linha e a equipa era engolida por adeptos em festa por onde quer que andasse.
"De repente, a Alemanha era alguém outra vez", de acordo com Beckenbauer, então um jovem adepto.
Um resultado que foi muito além de uns simples pontapés na bola: "recuperamos a nossa auto-estima."
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