Semanário de 16 de Junho de 2018
Texto Christiana Martins e Hugo Franco
Fotografia Rui Duarte Silva
Desalento: Maria do Céu Silva, há um ano. na Barraca da Boavista, dois dias depois do incêndio, às 7 horas, vai pela primeira vez ver como ficou a sua plantação de milho
As pessoas de Pedrógão Grande não baixam os braços.
Perderam familiares e património, mas a região tenta reagir.
Há novos negócios, gente que escolhe ir para lá viver.
Depois da surpresa das mortes, o espanto da vida
Desalento: Maria do Céu Silva, há uma semana, no mesmo local, à mesma hora - o chão está verde, mas nada se salvou da plantação
Por baixo do chão quente, os bolbos de cebola cozem.
Não choram nem gritam, apenas definham.
Em Pedrógão, a morte chegou em silêncio.
Quando o país acordou, já nada havia a fazer.
Como a água que Maria do Céu Silva insistia em despejar na terra quente — era a última tentativa de salvar a horta da família, à porta de casa, na Barraca da Boavista.
Sete da manhã de 19 de maio de 2017 e não havia ninguém à vista enquanto D. Céu regava.
Os que sobraram estavam em casa, a lamber feridas.
O amanhecer foi mau, mas há menos de 72 horas a noite tinha sido muito pior.
Fechada com o marido numa despensa, no interior da casa, a mulher de 61 anos ouviu explosões, pensou que iam morrer.
Não morreram e, passado um ano, à mesma hora, a horta tem serviço para mostrar: couves gigantescas, de um verde quase açoriano, adubadas por muitas cinzas e regadas com outras tantas lágrimas.
Das cebolas, não sobrou nada.
Não houve nem água nem esforço que as salvasse: “Morreram todas.”
As cebolas não vingaram, mas D. Céu já completou 62 anos e o marido, José Manuel, 63. E ela continua a trabalhar todos os dias, como há 26 anos, na empresa de madeiras de Mário de Carvalho, o homem que morreu sozinho, numa curva da estrada.
Ainda trata da contabilidade da sociedade e das contas dos sete funcionários.
Este ano, já avisou a família: “Não há férias para ninguém.”
Há muito trabalho a fazer e muitos estragos a recuperar.
Não há tempo para estancar na tristeza e ficar a lamentar as mortes.
Ali todos se conhecem, melhor ou pior, e há sempre histórias tristes a contar, mas, avisa a idosa, “não há tempo a perder, temos trabalho para fazer, não podemos parar”.
Naquele fim de semana em que se viria a descobrir que morreram 65 pessoas, 47 das quais numa estrada nacional a fugir do fogo, Mário de Carvalho foi um dos números desta estatística macabra.
Madeireiro e um dos grandes proprietários de terrenos florestais da região, com 49 anos, era afilhado de batismo de D. Céu e morreu numa curva da estrada, antes de chegar à EN 236-1, sozinho, enquanto percorria as terras antes cobertas de árvores e depois reduzidas a pouco mais do que pó.
“Naquele dia do fogo, ele passou por aqui, por volta das 19h20.
Parou a carrinha e estava desesperado com a perda de um eucaliptal de 40 mil euros, e disse uma frase que não me sai da cabeça: ‘Nem sei o que o fogo vai fazer mais, ele vai maluco.’”
O maluco ainda o ia matar naquela noite, mas Mário não sabia, embora já o temesse. “Entrou na carrinha, apitou e seguiu”, completa D. Céu.
Não desiste há um ano, não parou nem uma semana para chorar.
“Dias depois do incêndio, uma das minhas duas filhas trouxe sementes de tudo, e voltámos a plantar tudo outra vez, porque nada se salvaria”, conta.
Depois de tentar fugir e de dar de caras com o incêndio, voltou para dentro, fechou tudo e ficou a ouvir as explosões das botijas de gás e dos pneus dos veículos da vizinhança. Pensava que nada ficaria de pé, mas dela e do marido ardeu apenas o barracão.
Só que o ‘apenas’ torna-se enorme.
É ao falar do pequeno edifício térreo que ela chora pela primeira vez: “Lá dentro estavam todos os nossos equipamentos agrícolas.
Perdemos tudo, e ninguém nos ajudou.
Nada vimos dos tão falados donativos, não recebemos nenhum apoio.
Disse a quem de direito: ‘Repartam, encontrem soluções, mas não deixem ninguém sem ajuda.’”
Ela diz que ficou sem ajuda, que só pôde contar com ela e com o marido, “que se foi muito abaixo, ainda não arrebitou”.
As paredes do barracão foram reaproveitadas e o telhado já lá está.
Tudo pago por ela e pelo marido.
É quando fala também dos patos, das galinhas e do cão que morreram.
Apesar de tudo, sabe que tiveram muita sorte — além de sobreviverem, a casa nada sofreu, e salvaram-se o boi e o porco.
Medo: na noite de 19 de junho, depois de saber da morte de um colega, Pedro Rafael Mendes só se perguntava como um fogo podia ser tão grande. Com quatro companheiros, numa saída da estrada da Louriceira, olhava o fogo à distância.
Medo: Um ano depois, o muro é o mesmo, o homem também, o cenário é que mudou.
Nunca lhe passou pela cabeça sair dali, virar as costas à terra onde nasceu.
Diz que os prejuízos são “incalculáveis” e que não voltará a ter o que um dia amealhou. Sobretudo, as árvores, porque “essas, mesmo que as voltemos a plantar, não teremos tempo para as ver crescer”.
Há um ano, D. Céu aligeirou a conversa com os jornalistas.
Afinal, ainda tinha de descer a ladeira, ir ver o que acontecera com o campo cheio de milho que tinha lá em baixo e que ainda não tivera tempo de visitar.
O Expresso fotografou-a nesta busca pelo que plantara.
Um ano depois, voltou a fixá-la com os pés enterrados no verde dos fetos.
O chão é verde, mas o futuro nem por isso.
No rosto da mulher, a preocupação é evidente.
Afinal, explica, “o pior ainda está por vir, quando daqui a dois anos todas as árvores queimadas tiverem sido cortadas e vendidas e não houver mais árvores para vender”. Ensina que os antigos alertavam que quando se cortavam os pinheiros e os eucaliptos era necessário deixar outros tantos já plantados e em pleno crescimento, para que pudessem ser cortados dali a alguns anos, mas, diz, agora não é possível calcular ganhos futuros, só perdas.
“E quem mais vai sofrer serão os idosos, que tinham nas árvores um rendimento certo, e não será plantando os castanheiros, de que muito gostamos mas que também arderam e demoram muito mais tempo a crescer, que vamos conseguir esta renda.”
Quem não pode desviar os olhos do futuro é Pedro Rafael Mendes.
Tem apenas 24 anos.
Bombeiro na corporação de Ansião desde 2014, lembra-se com detalhe daquela noite de 19 de junho, quando foi fotografado pelo Expresso.
No meio do nada, para lá das bermas da estrada da Louriceira, sentou-se num muro baixo, dentro da floresta, a vigiar o fogo.
Na cabeça só conseguia questionar: “Como é possível um incêndio ser tão grande?”
Nunca tinha visto nada assim, em tão pouco tempo de operacional.
Pensava na dimensão e na força das chamas e no colega Gonçalo Conceição, o único bombeiro a morrer na tragédia de Pedrógão Grande.
O cenário da imagem mudou: as árvores que eram enormes desapareceram, o horizonte que parecia distante aproximou-se, e o chão, na altura cheio de caruma, está limpo, é só terra.
Há árvores recém-plantadas, a continuação do muro já está de pé.
Nada recria atualmente o ambiente de tensão daquela noite, e Pedro, há um ano o responsável pelo camião de abastecimento, já mudou de vida.
De tal forma o fogo o tocou que passou a profissional, como membro da Equipa de Intervenção Permanente.
“Não me vejo a fazer mais nada na vida que não seja combater o fogo.
Medo temos sempre, mas a necessidade de ajudar as pessoas e proteger as terras é mais forte”, confessa.
Naquele fim de semana, a mãe pediu-lhe que não fosse combater o fogo.
Teve medo pelo filho.
E durante muito tempo Pedro e os quatro colegas, com dois camiões, foram os únicos bombeiros nas imediações.
Apesar de ter estado uma única vez naquele local, lembra-se na perfeição do cenário que o enquadrou na fotografia do Expresso há um ano.
Recorda-se de terem jantado de madrugada, das poucas conversas entre eles, do ambiente de consternação pela morte de outro bombeiro.
“Era assustador, e nestes momentos mistura-se tudo na nossa cabeça”, confessa, sublinhando que não se conseguia esquecer de casa, do que deixara para trás.
E fala da sua aldeia natal, São João de Brito, a cinco quilómetros de Ansião, no distrito de Leiria, “uma zona especialmente crítica”, que pode ver-se confrontada com um incêndio de forma inesperada.
E ele pode não estar lá, pode estar a ajudar noutro lado.
O efeito das tragédias de 2017 nas forças de combate e de socorro ainda está por divulgar. O relatório encomendado pelo Ministério da Saúde e elaborado pela Comissão de Acompanhamento de Saúde Mental nas regiões afetadas entrevistou 750 pessoas, mas não discriminou os efeitos dos incêndios nas forças de segurança e no pessoal médico. Pedro Rafael é um exemplo das consequências psicológicas das mortes e do risco mesmo entre os profissionais.
“Ficámos traumatizados, ainda há muito para arder, e temos sempre de pensar na hipótese de ficar alguém para trás, porque nestas situações é tudo muito rápido e pode mudar de repente”, partilha, com os intensos olhos verdes a brilhar.
“Mudei depois de 17 de junho, vi e tomei consciência de que a natureza é muito forte, há momentos em que se torna incontrolável, e o que marca nestas situações é a brutalidade do fogo”, desabafa.
Sofrimento: um dos momentos mais pungentes de 2017 foi o funeral de Goçalo Conceição, o bombeiro-herói. Políticos de todos os quadrantes fizeram questão de comparecer, mas, passado um ano, a irmã e os pais de "ASSA" continuam com dúvidas sobre o socorro que lhe foi prestado.
Brutal foi a morte de Gonçalo Conceição.
Atingiu o país, a Assembleia da República, São Bento e Belém.
“Assa”, conhecido pelo nome do restaurante que geria, o bombeiro-herói, como foi chamado nos jornais e nas televisões, tinha 39 anos e deixava um filho de 11.
Integrante da corporação de Castanheira de Pera, estava num camião com quatro colegas quando foram abalroados por um Mercedes.
Os três ocupantes do veículo ligeiro morreram de imediato.
Entre os bombeiros, apenas Gonçalo viria a morrer, dois dias mais tarde, na Unidade de Queimados do Hospital Universitário de Coimbra.
Ao seu funeral compareceu todo o Portugal político, desde o Presidente da República e do primeiro-ministro aos líderes dos partidos da oposição.
Houve muito choro, muita dor, um sofrimento que continua a derrubar Joaquim e Soledade Conceição, os pais de Gonçalo.
Uma morte marcada por grande revolta e muitas dúvidas sobre as circunstâncias em que foi prestado o socorro.
Um processo que não permite que a família faça o luto pela perda da sua figura mais brilhante.
“Gonçalo era a alma da casa, a força, e neste ano que passou tudo mudou para nós”, explicam Joaquim e Soledade, sob o olhar atento de Belmira Morgado, a filha mais velha, que se tem dedicado a apurar, inclusive do ponto de vista judicial, a forma como Gonçalo terá, ou não, sido atendido pelas equipas de saúde na noite do incêndio e nos dias que se seguiram.
“Ele estava vivo, pediu que dessem água aos colegas antes de lhe darem a ele, foi consciente na ambulância até ser entubado e ventilado.
Não morreu na EN 236-1 nem foi queimado.
O que lhe aconteceu?”
A revolta é ainda maior contra o próprio “Assa”.
“Porque te deixaste morrer, se nos fazes tanta falta?”
A pergunta custa a ouvir — e mais ainda custará a dizer — e vem de uma mulher de apenas 58 anos que promete nunca mais tirar o luto.
Soledade deixou de ser “a menina do Gonçalo”, e ela perdeu a sua “criança grande”.
Desde a morte do filho, nunca mais rezou, porque não pode orar a alguém cujo sentido de justiça diz não conseguir compreender.
E a dor irradia de mãe para pai, de mulher para marido.
“Os colegas dele estão cá, alguns encontravam-se em muito pior estado do que ele. Porque não o Gonçalo?”, questiona Joaquim, igualmente de negro perpétuo.
Uma morte tão mais brutal e assustadora porque Gonçalo sempre se conseguira salvar no limite.
Acostumara mal a família.
Mas o calendário não permite sossego.
No dia 25 de agosto, Gonçalo não estará mais na comissão de organização da Festa do Senhor, em Castanheira de Pera.
Mas a sua ausência será justamente a razão da presença de Tony Carreira.
Admirador do cantor, Gonçalo nunca conseguiu levá-lo à sua terra, mas a participação de Tony nas comemorações está agora confirmada.
Porque o tempo continua a somar dias uns atrás dos outros, indiferentes às lacunas que algumas pessoas deixam nas comunidades onde vivem.
Naquela família, a luta diária é pela manifestação de força.
Todos têm de se mostrar fortes, para que ninguém se deixe derrubar pela tristeza.
“Nunca quisemos ter apoio psicológico, apoiamo-nos uns aos outros”, explica Soledade.
E brindam.
Todas as vezes que se sentam juntos à mesa, os copos erguem-se e, baixinho, sussurram o nome de Gonçalo.
Foi a forma que encontraram para continuar, para seguir em frente.
RENASCER DAS CINZAS
As curvas e contracurvas em direção à pequena cascata da ribeira do Caldeirão, perto de Figueiró dos Vinhos, fazem-se sem os picos de ansiedade de há um ano, quando os fogos devoravam cada centímetro de floresta.
A chuva e a neblina contrastam com o calor e os ventos quase tropicais de junho de 2017. O violento crepitar das chamas foi substituído por um silêncio bucólico.
Os sorrisos abertos são também uma expressão renovada para quem perdeu familiares, amigos, vizinhos.
Bruno Catrau, de 39 anos, ainda faz o luto de um dos seus melhores amigos, o bombeiro Gonçalo “Assa”, com quem estaria hoje a jogar futebol em campeonatos amadores não fosse a tragédia ter-se espalhado a sete ventos naquele sábado negro.
“Naquele dia, ele não pôde ir connosco ao torneio que jogámos no norte do país”, lembra o professor de Educação Física e empresário da Parede (Cascais), que se mudou para a região há mais de uma década.
Empreendedores: o português Bruno Catrau quer transformar um antigo lagar num SPA de Luxo
Quando a equipa regressou a Figueiró dos Vinhos naquela noite, já as chamas espalhavam a morte por todo o lado.
“Ouvíamos na rua que havia dezenas de pessoas falecidas, mas não acreditávamos, julgávamos serem apenas boatos”, conta Bruno Catrau, que foi imediatamente proteger a casa do sogro.
O pior confirmou-se nos dias seguintes.
“Era com o Gonçalo que ia ter sempre que precisava de falar.”
Sobre tudo.
Sobre nada.
As chamas levaram também o melhor amigo do filho de 5 anos, juntamente com quase toda a família.
O fogo desapareceu, surgiram depois as cinzas, e com elas os pequenos rebentos que cobrem hoje os terrenos em várias tonalidades de verde.
“O tempo está a ajudar a cicatrizar todas as nossas feridas.
Os incêndios acabaram também por fazer redobrar a vontade em fazer algo pela região.”
O empresário não é fatalista e recusa-se a desistir.
Pelo contrário, já teve várias oportunidades de ir trabalhar para fora de Figueiró.
Mas resistiu.
Admira a qualidade de vida que ganhou nos últimos anos.
“Os meus filhos crescem num ambiente saudável, têm amigos, são felizes.
Nós também.”
Bruno Catrau fala em frente a um terreno que comprou há 12 anos, por onde passam as ribeiras de Alge e do Caldeirão, entre uma antiga fábrica de lãs, um lagar e duas mansões cobertas de vegetação e a precisar de obras.
É ali que planeia construir um spa e um turismo rural, um projeto que ainda não tem investidores mas que já conta com o primeiro prémio do Re-Nascer Challenge, uma iniciativa que promete fazer mudar o ADN de todo o Pinhal Interior.
Vão ser precisos dois milhões de euros para transformar terrenos férteis mas ao abandono em solos para agricultura biológica, que servirão para alimentar os futuros hóspedes aos almoços e jantares e até para produzir óleo para massagens.
Não é preciso fechar os olhos para imaginar o futuro onde as velhas cubas de azeitonas se transformam em reluzentes banheiras de hidromassagem.
Se os abrirmos a poucos quilómetros de distância, já no centro de Figueiró, teremos um vislumbre do que pode ser o amanhã.
Um edifício branco, de aspeto moderno, apetrechado com tecnologia de ponta, ainda a cheirar a novo, é uma obra de dois filhos da terra que se cansaram de ver o concelho associado à morte ou aos hectares queimados a perder de vista.
“Há coisas que fazemos por dinheiro e outras que fazemos por amor.
E foi por amor que criámos este projeto”, conta Marisa Violante, especializada em medicina física de reabilitação.
Empreendedores: Marisa Violante já trabalha na sua clínica em Figueiró dos Vinhos
A clínica que a médica de 35 anos e o irmão Luís, oftalmologista, abriram em Figueiró dos Vinhos há cinco meses foi pensada sobretudo, mas não só, para a população mais envelhecida e que trabalha nas fábricas de madeira que se multiplicam ali e nos concelhos vizinhos.
“Até agora estas pessoas, que eram vítimas de lesões musculares e esqueléticas causadas pelo trabalho, eram obrigadas a viajar de propósito para Coimbra ou Leiria”, lembra.
Saúde de proximidade.
Marisa Violante não se cansa de repetir o lema.
E não só nas áreas da reabilitação física ou da oftalmologia.
A clínica foi feita também para os que sofrem de problemas cardíacos, dos ouvidos, da pele ou de foro psiquiátrico.
Todos eles podem ser seguidos por um especialista a poucos quilómetros de casa.
Algo que seria impensável até há poucos meses.
“O investimento foi elevado, mas o risco é assumido”, confessa Marisa Violante.
Daqui a dez anos ambiciona que o negócio de família se transforme em algo maior, com mais impacto para os outros filhos da terra e das redondezas.
Apesar de ser recente, a clínica já atendeu várias das vítimas que foram atingidas pelas chamas no último verão e que recuperam das queimaduras.
Os traumas físicos e psicológicos não vão ser fáceis de ultrapassar, mas, apesar de ser uma pessoa da ciência, a médica tem um discurso que não esconde uma boa dose de fé. “Os incêndios criaram em nós uma vontade de dar outra dinâmica à terra.
De seguirmos em frente e arriscarmos.”
Mas não são apenas os filhos da terra que demonstram um amor incondicional à região e que enfrentam de olhos semicerrados a incógnita criada pela destruição.
No sentido inverso da razão, Ana Raquel Borges mudou-se de Lisboa para a zona do Pinhal Interior já depois de os fogos terem mostrado que conseguiam arruinar em segundos as obras mais perenes do Homem.
A jovem de 28 anos, mãe de três crianças e formada em Artes e Design, teve uma motivação extra que também veio do fundo do coração.
No verão de 2016 fez turismo em Figueiró dos Vinhos, visitou os locais da praxe, e quando acabou as férias já não era a mesma pessoa.
“Apaixonei-me pela região e conheci aqui o amor da minha vida, o meu marido, que é de cá.”
Empreendedores: Carolina Gama prepara-se para gerir uma loja online de produtos regionais
A 17 de junho de 2017 estavam acampados em Castanheira da Pera e viram a destruição a acontecer em direto, embora sem nunca correrem risco de vida.
“Desolação” é o substantivo que escolhe para o que viu e sentiu na manhã do domingo depois da passagem incontrolada das chamas.
O casal já tinha em mente uma mudança de vida, desejo que foi apressado por tudo o que vivenciaram na semana mais negra da região centro.
À primeira vista, parece até paradoxal.
Mas não é.
Em vez do medo, veio o desafio.
“O fogo fez desbloquear algo que já andávamos a planear.
Fez tudo acelerar”, tenta explicar Ana Raquel Borges.
Desde novembro que vivem em Figueiró.
O marido é jardineiro e faz limpeza de matas em muitas propriedades de pessoas que foram atingidas pelos incêndios do ano passado.
Quanto a Ana Raquel Borges, sempre sonhou abrir uma mercearia com frutas e legumes biológicos.
No final do ano, prevê que consiga chegar lá.
Para já, vende alguns desses produtos em mercados locais ou por encomenda.
“Em pouco tempo fizemos muitas amizades.
As pessoas de cá são muito carinhosas.
Estamos cá de corpo e alma.”
Tão cedo não se vê noutro local.
As suas paixões continuam acesas, como no já longínquo verão de 2016.
MINICASAS E QUEIJO DE CABRA
O lugar-comum que temos de um nórdico que vive no meio de quase nada, longe da civilização, assenta na perfeição no entrepreneur Sammy van den Berghe.
Características físicas: alto, magro, roupa prática.
Traços de personalidade à vista: alguma timidez compensada com conversa rápida, numa mistura de frases em português, inglês e francês, espírito prático, do mais pragmático que se poderia encontrar em Bruges, de onde é natural.
Não sem algum humor e despretensão à mistura.
O belga esteve quase para desistir de Pedrógão Grande nos meses que se seguiram aos fogos.
Por sua vontade, tinha vendido tudo, feito as malas e regressado à Bélgica.
A rota inversa que fez há 12 anos.
“Com o incêndio, ardeu toda a minha motivação”, queixa-se, pesaroso, quando se recorda desses tempos.
As chamas cercaram o enorme armazém onde constrói minicasas em madeira como atrelados, batizadas de Tiny Houses, e a que nós poderíamos designar de autocaravanas de luxo.
Algumas custam cerca de 20 mil euros.
O fogo consumiu tudo o que tinha em redor e só não entrou no edifício por este ter sido construído com material não inflamável.
Ainda assim, Sammy perdeu milhares de euros, porque à volta do armazém havia atrelados e caravanas de madeira (importada da Suécia) que ficaram reduzidas a cinzas.
“Quis desistir, mas as pessoas da região deram-me um grande apoio.
Estou de novo motivado e acho que no bom caminho”, explica.
Olha para os amigos, colegas e vizinhos com a objetividade típica de quem cresceu a dois mil quilómetros de distância.
As virtudes e os defeitos serão mais fáceis de apontar por quem não cresceu numa zona rural, isolada, periférica, habituada a ser uma segunda escolha do poder central.
“Antes, isto era uma jungle, uma confusão.
Cada um por si”, diz, quando se recorda da atitude de alguns que se recusavam em limpar os terrenos em redor para evitar tragédias maiores.
Para o belga, o 17/6 não trouxe só coisas más.
Já se consegue aperceber de diferenças, algumas abissais.
“Notei que muitos fizeram um reset.
Conseguiram começar de novo.
Tornaram-se mais responsáveis, nomeadamente no cleaning da floresta.”
Encontrámos o seu armazém, já pintado e sem marcas da combustão, perto de Vila Facaia, uma das aldeias que mais sofreu com a tragédia, onde morreram 13 pessoas.
Lá dentro, Sammy já tem uma autocaravana de luxo pronta a seguir viagem.
E uma série de encomendas em lista de espera.
Trabalho não lhe falta.
Os clientes são sobretudo estrangeiros que residem em Portugal, mas também há franceses à espera, em Paris, de um modelo fabricado em Pedrógão Grande.
Todos eles sonham com evasão, viagens por toda a Europa nestas casas sobre rodas que são anos-luz mais confortáveis e menos claustrofóbicas do que as tradicionais rulotes ou autocaravanas.
No que diz respeito ao belga, irão concretizar os seus desejos.
É que ele não sairá de Pedrógão tão cedo.
E tem muitas minicasas para construir com a ajuda de carpinteiros locais.
Empreendedores: o belga Sammy Van Den Berghe constrói minicasas em Vila Facaia
Este projeto de Sammy van den Berghe foi uma das 16 candidaturas recebidas na primeira edição do Re-Nascer Challenge.
Uma iniciativa nascida na cabeça de Feliciano Roldão e de outros empresários portugueses e americanos com a missão de voltar a pôr de pé a economia e a autoestima da região.
“Já não bastava enviar roupa, eletrodomésticos ou comida para Pedrógão.
Era preciso mais”, relata o empresário, que é natural da região mas trabalha em Loures.
Esta união de empresas, autarcas e agentes locais — Feliciano Roldão prefere a expressão networking — vai ainda no início, mas promete resultados práticos.
Há mais três projetos em curso: o Re-Nascer Hub (uma incubadora de start-ups locais); mais edições do Re-Nascer Challenge para atrair novos empreendedores; e uma conferência (“uma summit”) dedicada ao interior já com data marcada para 3 de novembro. Inspirado talvez pelos festivais de rock, o evento também terá um palco principal, “para falar, inspirar e debater”, e um outro secundário, “onde estarão autarcas a debater os assuntos quentes da região num modelo de Prós e Contras”.
O futuro passa pela discussão.
Mas são mais as perguntas do que as respostas.
Se por acaso alguém perguntar a um qualquer presidente de uma junta do Pinhal Interior se os incêndios se combatem só com homens e mulheres, ele saberá responder que não. Há muito que as cabras sapadoras são utilizadas para limpar os terrenos, de modo a evitar mais fogos.
Estes animais são uma espécie de arma secreta do alemão Manfred Markl, que vive há 34 anos num lugarejo sem nome não muito afastado de Pedrógão Grande.
O combate às chamas não é o único atributo destas cabras que pastam nas traseiras da sua casa.
O germânico franzino produz um dos queijos curados mais apreciados nas redondezas.
Era quase um segredo local até ao momento, mas vai deixar de o ser em breve.
Tudo porque os queijos de cabra serão uma das estrelas na montra da loja online Sabores de Cá, criada por Carolina Gama, de 26 anos.
A partir do dia 20, qualquer pessoa poderá adquiri-los à distância de um clique.
“Vou expor e vender todo o tipo de produtos da região: mel, enchidos, vinhos, bolos, biscoitos ou aguardente de medronho”, conta a jovem, formada na área de produção alimentar.
Antes do fogo, o seu negócio era tímido, porque não tinha mãos para tantas encomendas nem meios de as escoar.
Depois das chamas, parece ter ganhado um novo fôlego.
“Apercebi-me no último verão de um interesse acrescido pelo que é produzido cá.
Pelos sabores de cá.”
Num piscar de olhos, aliou-se a vários produtores, como Manfred Markl.
Sozinhos, estes homens e mulheres produziam para um punhado de pessoas sem certezas de amealhar dinheiro para o mês seguinte.
Juntos, com o poder das novas tecnologias, podem sonhar com uma vida renascida das cinzas.
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