sábado, 9 de junho de 2018

O barco que transportou o primeiro Mundial dentro dele

MUNDIAL 2018
Tiago Oliveira
05.04.2018 ÀS 11H50
A equipa francesa que viajou até ao Mundial 1930 num momento de descontração a bordo do Conte Verde
Correr, conversar, descansar e nada de táticas. Foi assim a viagem de duas semanas do Conte Verde em 1930 que levou quatro seleções, três árbitros e a taça do mundo rumo ao Campeonato do Mundo inaugural no Uruguai. (Esta é a primeira história na nossa nova série enquanto Portugal não entra em campo no Mundial da Rússia)


Vamos fazer um pequeno exercício. 
Deixe a sua cabeça entrar no ritmo da música do Barco do Amor (se precisar de uma auxiliar de memória, é só clicar no vídeo em cima) e entre no espírito de viagens exóticas e romance que a série semanalmente prometia. 
Agora é concentrar tudo num espaço de duas semanas, substituir “Barco do Amor” por “Conte Verde” e romance por futebol. 
É o “rumo para uma nova aventura” que muitos dos passageiros devem ter sentido quando embarcaram rumo ao encontro com a história.

O destino era o Uruguai e o primeiro campeonato do Mundo organizado pela FIFA em 1930. E se hoje viajar para uma competição internacional de seleções terá como maior complicação o controlo aeroportuário para entrar no avião, na altura não era bem assim. Deslocações intercontinentais implicavam tempo e muito dinheiro para um desporto que não tinha a dimensão de hoje. 
Nem os recursos. 
Pelo que teve que ser um rei recentemente coroado e a nacionalidade de dois presidentes a ajudar a compor o ramalhete de 13 equipas (já vai perceber o porquê do invulgar número ímpar).

Tudo começou pela polémica na atribuição do torneio. 
O Uruguai era a potência sem contestação da época, enquanto as nações britânicas (berço do futebol moderno) já davam asas a um Brexit rudimentar ao saírem da FIFA para se colocarem à parte, num campeonato entre elas. 
Medalha de ouro na competição de futebol dos Jogos Olímpicos de 1924 e 1928, a nação sul americana aproveitou os festejos do centenário da primeira constituição do país para se candidatar à organização. 
Juntaram-se a Itália, Suécia, Holanda, Espanha e Hungria que, por uma razão e por outra, foram desistindo ao longo do processo.

Sem apuramento, a competição fez-se exclusivamente por convite aos países que então faziam parte da FIFA. 
Quem quisesse, podia entrar. 
Nas Américas, o interesse foi elevado, com sete equipas da América Latina (além do Uruguai) e os EUA a declararem o seu interesse. 
Já do lado europeu, que compunha a parte de leão das federações, ainda ninguém se tinha chegado à frente quando faltavam só dois meses para a competição.

Eis que chegou a hora do bom velho entusiasmo político que conseguiu apelar a quatro equipas do velho continente. 
Pelo seu lado, o presidente francês da FIFA, Jules Rimet (que deu o nome ao troféu de campeão do mundo), não descansou enquanto não garantiu a presença de uma seleção francesa. 
Que ainda assim viajou sem a principal estrela e o selecionador habitual (Manuel Anatol e Gaston Barreau respetivamente), sem tempo nem paciência para o que esperava, segundo reza a lenda. 
O mesmo se passou com a Bélgica, sob pressão do então vice-presidente belga-alemão da associação, Rodolphe Seeldrayers.

Quarteto de cordas para relaxar

Com espaço histórico para mais duas equipas, chegou a hora do rei Carol II da Roménia. Coroado há pouco tempo, faz da ida de uma seleção romena uma cause celebre nacional que levou muito a peito. 
Escolheu o treinador e selecionou os jogadores 1 a 1, além de ter convencido os empregadores a deixá-los ausentarem-se (com salário) por um período de tempo indeterminado. 
Foi também instrumental em convencer o rei Alexandre I a fazer a Jugoslávia a juntar-se à festa à última da hora, não sem problemas também, mas aqui de outro género. 
Os croatas recusaram-se a entrar numa equipa conjunta, o que, para não ferir sensibilidades, obrigou a federação a optar por levar só jogadores sérvios.

Alinhamento definido e tudo pronto para receber. 
Só faltava definir a pequeníssima questão das viagens e dos custos de transporte das equipas. 
Após muita discussão, conversas, avanços e recuos, decidiu-se que a união fazia a força e optou-se por uma solução que se escreve em duas palavras: Conte Verde. 
Construído em 1922, nos estaleiros da firma William Beardmore & Cº em Glasgow, era um paquete de luxo que levava a alcunha porque era conhecido o popular Amadeu VI, Conde de Sabóia. 
Pesava 18.761 mil toneladas e estava rotinado para a exigente viagem transatlântica que se pretendia, além de ter espaço para todos. 
Ou quase, melhor dizendo, porque a entrada tardia da Jugoslávia fez com que já não houvesse lugar para eles. 
Nada que mais uma pressão não resolvesse e arranjasse lugares noutro navio.

Mas voltemos ao Conte Verde. 
A viagem mais famosa do navio começou em Génova, onde embarcou a seleção da Roménia. 
Seguiu-se uma paragem em Villefrance-sur-Mer, onde apanhou a seleção francesa, três árbitros (para juntar aos 11 uruguaios que compuseram a equipa do apito) e o próprio Jules Rimet, que levou o troféu literalmente na mala. 
Os belgas entraram em Barcelona e a viagem prosseguiu rumo ao encontro com a história.

Um dos golos do Uruguai na vitória por 4-2 sobre a Argentina que levou à conquista do primeiro Mundial da história

Foram 15 dias muito felizes”, contou Lucien Laurent, o francês que se tornaria no primeiro jogador a marcar um golo no Mundial. 
“Fazíamos o aquecimento no porão e o treino no convés. 
Depois relaxávamos na piscina e à noite com comédia ou um quarteto de cordas. 
Foi como um campo de férias. 
O treinador nunca nos falou de táticas”, recordou com a ressalva que eram “jogadores jovens a divertirem-se.” 
Só mais tarde se aperceberam do “lugar na história” que tinham garantido.

Transporte de tropas

Pelo caminho, ainda apanharam o Brasil no Rio de Janeiro antes de atracarem em Montevideo, capital uruguaia onde se realizaram todos os jogos da competição. 
Caminho de convívio que não levou nenhuma destas equipas à fase a eliminar, que curiosamente contou com os afastados da Jugoslávia. 
O campeão, esse seria o anfitrião Uruguai a confirmar a hegemonia da época após todos os percalços para que o Mundial fosse efetivamente mundial.


Quem voltou a ter papel na história foi também o Conte Verde. 
Entre 1938 e 1940 levou perto de 17 mil refugiados judeus para a China, onde o advento da II Guerra Mundial acabou por o deixar ancorado na posse dos japoneses. 
Dois anos depois, já com o nome de Teikyo Maru, foi utilizado para uma troca de diplomatas no então porto neutral de Lourenço Marques (agora Maputo) e acabaria por ser reconvertido para o transporte de tropas japonesas. 
Afundado e reconstruído duas vezes, acabaria por ser desfeito em 1949.

São duas palavras e um navio que ficam para a história “de uma nova aventura” que deu pelo nome de Campeonato do Mundo de Futebol. 
Até aos dias de hoje.


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