Os faraós pioneiros (e escoceses) que fizeram história na Itália de Mussolini
MUNDIAL 2018
Tiago Oliveira
13.04.2018 às 7H00
Mussolini entrega o troféu Jules Rimet ao capitão da Itália. O ditador italiano utilizou a competição de 1934 como uma montra do regime fascista e do poderio transalpino
Foi a primeira seleção africana a participar no Mundial e a única durante 36 anos. Ícones para toda uma geração, os estreantes do Egito só tiveram 90 minutos para fazer história no Itália 1934.
Já com direito a queixas do árbitro (Esta é a segunda história na nossa nova série enquanto Portugal não entra em campo no Mundial da Rússia)
"Foi a minha primeira internacionalização e na altura não compreendi a magnitude daquele evento histórico."
Nem Mustafa Kamel Mansour, guarda-redes do Egito, nem porventura muitos dos seus colegas que se preparavam para o primeiro jogo de qualificação para o Mundial de 1934. Mas o seu feito já estava a ser inscrito na memória coletiva de todo um continente que demorou até voltar ao maior palco do futebol global.
Foi uma competição de estreias, aquela que escolheu a Itália de Mussolini para a segunda edição do torneio e que o ditador tentou converter em montra do fascismo.
Só para começar, pela primeira (e única vez) o campeão em título, o Uruguai, não esteve presente para defender o troféu como resposta à recusa da Itália em viajar para a América do Sul quatro anos antes.
Introduziu-se também o sistema de qualificação, após o sistema exclusivo de convites que a FIFA definiu para o torneio inaugural.
36 equipas (inclusivamente a anfitriã Itália, também pela primeira e única vez) tiveram que disputar eliminatórias para chegarem à fase final de 16 equipas.
O último play-off, por exemplo, jogou-se em Roma apenas três dias antes do arranque do Mundial, com os EUA a vencerem o México.
Desses lugares, apenas um estava alocado para uma equipa da África ou Ásia.
E é aqui que entram os nossos pioneiros.
O Egito já era a grande potência regional da altura, tendo ficado em quarto lugar do torneio de futebol dos Jogos Olímpicos de 1928 (com uma vitória por 2-1 sobre Portugal nos quartos de final pelo caminho) e um futebol potenciado pelo globetrotter treinador escocês Jimmy McRae.
Estrelas caseiras, como Mohammed Latif, Mahmoud Mokhtar e já referido Mansour abrilhantavam o plantel que sonhava com um papel de destaque.
Pelo caminho, a Turquia e o Mandato da Palestina (à época um colónia britânica que ocupava, com ligeiras diferenças, o atual território de Israel).
Antes sequer de colocaram os pés em campo, os turcos desistiram (segundo os rumores da época, por não quererem nova humilhação à escala dos 7-1 com que foram brindados pelos faraós em 1928) o que converteu a fase de qualificação numa simples eliminatória.
A primeira disputada por uma equipa africana e árabe que, ao contrário do que possa pensar, não era a Palestina, uma vez que a equipa era inteiramente composta por jogadores oriundos de Terras de Sua Majestade.
Que não teve qualquer hipótese.
Ou um autêntico passeio, fazendo uso dos chavões atuais.
O GOLO DA DIFERENÇA
No Cairo, perante um público oficial de 13 mil pessoas (muitos mais estiveram presentes de acordo com os relatos) o Egito venceu por 7-1 e praticamente carimbou a viagem para Itália.
Só faltava a formalidade da segunda mão, onde uma equipa de segunda linha triunfou em Tel Aviv por 4-1.
Eis que chegou a hora daquilo que hoje se trataria por amadorismo.
Apesar de o selecionador e a federação terem acordado um mês de concentração em caso de qualificação, incluindo a viagem e um semana de treinos já em solo europeu, os responsáveis fizeram ouvidos de mercador e deixaram a época doméstica decorrer normalmente.
O resultado foi que a equipa se viu privada de alguns dos melhores jogadores e os preparativos foram tudo menos ideais, sobretudo se tivermos em conta que a fase final do Mundial era só jogos a eliminar.
Por outras palavras, 90 minutos para validar anos de espera.
Para se ter uma ideia, o sorteio tinha colocado a Hungria no caminho do Egipto a 27 de maio e a final da Taça que envolveu quase metade do plantel final (nove jogadores), só se realizou a 12 de maio.
Depois das peripécias, os faraós lá partiram para uma viagem de barco de quatro dias rumo a Itália e ao encontro com o destino em Nápoles.
Apesar dos húngaros serem os favoritos, a confiança era elevada e o jogo havia de provar, segundo Mustafa Kamel Mansour, que "éramos a melhor equipa, merecíamos ter ganho." Se não fosse um nome que ainda hoje é maldito no futebol egípcio, Rinaldo Barlassina.
O árbitro italiano haveria de estar em destaque, numa partida onde os húngaros chegaram rapidamente a uma vantagem de 2-0 e tudo parecia estar encaminhado para uma vitória sem história.
Só que ninguém avisou os egípcios.
Abdulrahman Fawzi tornou-se no primeiro africano a marcar e, pouco depois, a bisar, num Mundial para empatar o desafio perante o espanto do público italiano que começou a torcer pelos egípcios.
E chegou a fazer o hat-trick.
"Pegou na bola no centro, driblou uma série de jogadores e marcou.
Mas o árbitro anulou por fora de jogo", contou, incrédulo, Mustafa Kamel Mansour.
Um "gol de placa", como diriam os brasileiros, que não valeu.
MOTIM NO ESTÁDIO
Eventualmente os húngaros chegaram ao 3-2 e o jogo não acabaria sem mais um lance a motivar protestos por parte do Egito, com o lance do 4-2 a chegar com aquilo que Mustafa Kamel Mansour considerou "uma falta escandalosa" sobre si.
Com direito a quase um motim no estádio e duras críticas nos jornais italianos do dia seguinte.
Os jogadores italianos levam o selecionador Vittorio Pozzo em ombros após a vitória por 2-1 frente à Checoslováquia
Uma saída inglória de uma seleção que fez história, no Mundial ganho pela equipa da casa com um jogador que, quatro anos antes, tinha perdido a competição pela Argentina.
Luís Monti (mais uma vez na primeira e única vez que tal aconteceu) a mostrar o poder da nacionalidade flutuante que conheceu nos "Oriundi" italianos (alcunha para descrever os sul-americanos de origem transalpina que jogavam pela squadra azurra) a sua máxima expressão.
Os egípcios chegaram a casa como heróis, com Mohammed Latif e Mustafa Kamel Mansour a não ficarem muito tempo por casa.
Levados pelo seu selecionador, foram para a Escócia onde fizeram carreira e se tornaram famosos no Glasgow Rangers e no Queens Park, respetivamente, onde continuaram os estudos universitários.
Já África teve que esperar até 1970 para voltar a ter uma equipa na fase final do Mundial, Marrocos.
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