terça-feira, 26 de junho de 2018

Nós e os Kennedys

PORTUGAL - USA
Nelson Marques
23/Jun/2018

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        NÓS E OS KENNEDYS
JFK foi Presidente americano mais amado pelo mundo.
E a figura mais notável de um clã que, ao longo de três gerações, se cruzou com inúmeros portugueses.
Estas são as histórias do professor de vela, dos mordomos, das relações como Salazar e da visita de Ted ao Expresso em 1974.
Sem  esquecer a lenda da quinta na Arrábida onde Jacqueline Onassis terá vivido.
Dos mordomos de Jackie à relação ambivalente entre JFK e Salazar, a saga do clã político mais popular dos Estados Unidos cruzou-se com Portugal e com os portugueses.


DIPLOMACIA duas semanas antes de ser assassinado, o Presidente dos EUA John F. Kennedy encontrou-se na Casa Branca com o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Franco Nogueira

Num cantinho da sua casa em Queens, Nova Iorque, João Crisóstomo, de 74 anos, tem um pequeno santuário dedicado a Jacqueline Kennedy Onassis, a viúva do antigo Presidente dos EUA John F. Kennedy e do armador grego Aristóteles Onassis. 
“Chamo-lhe oratório”, revela com um sorriso. 
Na prateleira de cima estão vários livros e revistas sobre a antiga primeira-dama. 
Na do meio pode ver-se o tabuleiro onde era servido o seu pequeno-almoço e um artigo da revista “Mundo Português” onde Crisóstomo recorda o tempo em que conviveu com uma das mulheres mais icónicas do século XX. 
Mais abaixo está o tapete onde Jackie fazia ioga, bem como várias cartas e cartões escritos por ela à mão e um par de fotografias. 
Uma delas mostra-o no apartamento do 15º andar do número 1040 da Quinta Avenida onde Jacqueline viveu até à sua morte, em 1994. 
De calças pretas, casaco branco e gravata, Crisóstomo aparece sorridente ao lado de um móvel que foi oferecido pelo general Charles de Gaulle. 
A fotografia foi tirada no dia 24 de dezembro de 1985, antes do jantar de Natal, pela própria Jackie, que escreveu no verso: “Feliz Natal, caro Francisco [tratava-o assim, pelo segundo nome, para que não se confundisse com o do seu filho, John], para si e para toda a sua família. 
Temos saudades suas e ficámos muito felizes por vê-lo de novo. 
Obrigado por tudo o que fez para que a nossa festa fosse tão bonita. 
Feliz Ano Novo. 
Afetuosamente, Jacqueline Onassis”.

Crisóstomo foi mordomo de Jackie durante pouco mais de três anos, entre 1975 e 1979, mas nas duas décadas seguintes continuou a dar-lhe apoio em diversas ocasiões. 
“Ia lá sempre que ela precisava, ainda hoje guardo a chave do apartamento [entretanto vendido]”, conta ao Expresso. 
Quando chega a Nova Iorque, em 1975, está longe de imaginar que o seu destino se cruzará com o daquela mulher “extraordinária”. 
Natural de Torres Vedras, trabalhava no Leme Palace Hotel, no Rio de Janeiro, quando um antigo professor lhe sugere que vá aos EUA tirar um curso de hotelaria. 
Porém, depressa percebe que não tem qualquer possibilidade de pagar as propinas, “mais de 20 mil dólares na época, uma fortuna”. 
Tinha viajado em vão.       


  



































APAIXONADOS o então senador e a sua namorada Jacqueline, ainda conhecida pelo apelido de solteira Bouvier, fotografados em Junho de 19532, na casa da família Kennedy em Cape Cod   

Está decidido a regressar quando um amigo lhe diz que pode ter um trabalho para ele. Francisco Pereira é motorista do multimilionário banqueiro Edmond Safra, mas, ocasionalmente, trabalha para uma cliente da alta sociedade que tinha recentemente ficado viúva. 
A entrevista fica marcada para dali a um mês, porque a mulher está em Skorpios, a ilha privada de Onassis no Mar Jónico. 
Quando finalmente se encontraram, Crisóstomo fica “surpreendido e confuso” por ter pela frente Jackie O. 
“Ela mostrou logo ser uma pessoa muito simples. 
Digo sempre que foi uma primeira-dama em todo o sentido da palavra. 
Fazia os grande sentirem-se mais pequenos e elevava os mais pequenos ao nível dela”.

Apesar de ter trabalhado num hotel, o português não tinha qualquer experiência como mordomo. 
“Na verdade, nem sabia bem o que isso era”, admite. 
Por isso, propõe ficar dois meses à experiência. 
Ela aceita. 
Três semanas depois, enquanto ele lava a loiça, a governanta pergunta-lhe se gosta do trabalho. 
A senhora Onassis está pronta para assinar o contrato. 
“Foi a minha primeira medalha”, diz com orgulho.     

Fica a viver num quarto do apartamento, mesmo em frente ao reservatório de água onde a viúva de Kennedy e Onassis corria todas as manhãs, depois de tomar o pequeno-almoço que ele lhe servia (cereais, ovo cozido, pão integral com manteiga, iogurte e fruta) e de passar os olhos pelo diário “The New York Times”. 
Após o exercício, ela tomava um duche, arranjava-se e seguia de táxi para a editora Doubleday, que dirigia, levando com ela um ligeiro almoço. 
Pelas cinco da tarde regressava a casa, lia a correspondência que o mordomo lhe deixava no móvel da entrada, bebia um chá preto (por vezes comia também uma peça de fruta) e recebia uma massagem ou ia correr no Central Park. 
Saía geralmente para jantar fora — quando os filhos estavam, jantavam em família — e deitava-se pelas 22h. 
Crisóstomo ia para a cama por volta da meia-noite. 
Às 6h, já estava de pé. 
“Era intenso, mas fazia-o com toda a satisfação, nunca senti que abusassem de mim. 
Os portugueses tinham essa fama de trabalhadores que não olhavam a sacrifícios. 
Naquela época, há 20, 30 anos, eram a elite dos mordomos de Nova Iorque”.

É possível que o apreço de Jacqueline pelos trabalhadores lusos estivesse também associado às suas raízes. 
A antiga primeira-dama fora criada na Hammersmith Farm, em Newport, Rhode Island, cerca de 100 quilómetros a sul de Boston, uma região com uma grande comunidade de portugueses, muitos dos quais trabalhavam como pescadores, agricultores e empregados domésticos. 
Também o seu primeiro marido, John F. Kennedy, cresceu rodeado de emigrantes portugueses em Cape Cod, no Massachusetts, alguns dos quais terão trabalhado na propriedade da família em Hyannis Port. 
Um dos pescadores mais populares da região, Manuel Zora, lendário contrabandista marítimo durante a Lei Seca, gabava-se de ter ensinado o futuro 35º Presidente dos EUA a velejar no “Victura”, o barco que JFK recebeu no seu 15º aniversário.    

O DEDO DO MORDOMO EM FOZ COA E EM TIMOR

Crisóstomo não foi o único português ao serviço de Jackie. 
Na casa de casa de campo dos Kennedys em New Jersey, o mordomo e a cozinheira eram o casal Celestino e Alice Esteves. 
E quando o emigrante de Torres Vedras quis procurar um trabalho que lhe permitisse passar mais tempo com os filhos, foi outro compatriota, Efigénio Pinheiro, quem lhe sucedeu durante duas décadas, até à morte de Jacqueline. 
Em testamento, ela deixou-lhe 25 mil dólares, o equivalente hoje a mais de 35 mil euros. 
O mordomo ficou então ao serviço de John John Kennedy, filho de Jackie e JFK, até à morte deste e da mulher em 1999 num acidente de avião. 
Após a tragédia, Pinheiro regressou a Portugal com Friday, o cão do casal. 
Nunca quis falar à imprensa.


Militante de várias causas, foi a partir da casa dos Kennedys na Quinta Avenida que João Crisóstomo pôs em marcha a sua campanha internacional para travar a submersão das gravuras de Foz Coa. 
“Quando li a notícia no ‘New York Times’ disse ao John Jr. que queria fazer uns contactos. 
Naquela altura nem havia internet, então ele disse-me que podia ir lá para casa e utilizar o escritório. 
Foi de lá que mandei faxes para todo o mundo, para o Patrick Kennedy [filho de Ted Kennedy e então congressista], para os jornais ‘The Times’ e ‘Le Monde’, estabeleci ali o meu quartel-general. 
Um dia, eram 3 da manhã e recebi um telefonema. 
Era um jornalista de ‘Le Monde’”. 
Por coincidência, o artigo do diário francês foi publicado no mesmo dia que outro, do inglês “The Times”. 
Crisóstomo conseguira falar com o dono do jornal londrino, Rupert Murdoch, através do mordomo deste, também português. 
Quando António Guterres chega ao Governo de Portugal, o projeto da barragem é enterrado.





Causas João Crisóstomo (1, numa foto tirada pela própria Jackie Kennedy) foi mordomo da antiga da antiga primeira-dama no apartamento da quinta avenida de Nova Iorque, (2 e mobilizou vários membros da família, como Patrick Kennedy, (4, ao meio) para causas como as gravuras de Foz Coa e Timor-Leste; John Kennedy, (3 recebe um grupo de emigrantes açorianos na Casa Branca

O mordomo de Jackie, que mais tarde foi maître de um banco, usou também a sua rede de influências para apoiar a causa de Timor-Leste. 
Criou o LAMETA (Movimento Luso-Americano para a Autodeterminação de Timor-Leste) e, com o apoio de Patrick Kennedy, fez chegar uma petição ao então Presidente dos EUA, Bill Clinton, pedindo-lhe que pressionasse a Indonésia a aceitar a realização de um referendo. Numa carta enviada à Casa Branca a 9 de julho de 1997, o então congressista escreve: “Caro Sr. Presidente, envio-lhe várias petições sobre a autodeterminação de Timor-Leste que foram enviadas para o meu gabinete e que lhe são destinadas. 
Como pode ver pelo número de signatários este é um assunto importante para muitos americanos. 
Obrigado pela sua atenção para este importante assunto internacional de direitos humanos”.

LISBOA NO CAMINHO DE JOE KENNEDY

A relação dos Kennedys com Portugal é antiga. 
O patriarca, Joseph “Joe” Kennedy, pai de John, Robert e Ted Kennedy (todos membros da dinastia política da família) e de seis outros filhos, foi embaixador no Reino Unido entre 1938 e 1940, até ter esgotado a paciência do primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, e do Presidente americano Franklin Roosevelt com a sua oposição à entrada dos EUA numa guerra que, mais tarde, lhe levaria o filho mais velho (Joseph Jr.) e feriria outro (John). 
Determinado a renunciar ao cargo e acenando com a possibilidade de apoiar o candidato republicano à Casa Branca, Wendell Willkie, Joe deixa Londres em outubro de 1940. 
Com o filho John, o motorista e um jornalista, viaja então num avião cedido pelo Governo britânico para Lisboa, onde, com uma vintena de passageiros, embarcaria num Boeing 314, conhecido como “Atlantic Clipper”, rumo a Nova Iorque.

Devido a uma tempestade no Atlântico, a viagem — que incluiu escalas na Horta e nas Bermudas — é adiada duas vezes, forçando-os a ficar três dias na capital portuguesa, noticia na época o jornal “The New York Times”. 
O que terão feito durante esse tempo é um grande mistério, admite Frédéric Lecomte Dieu, biógrafo da família e curador da exposição “The Kennedy Years”, inaugurada esta semana em Lisboa. 
“É provável que ele [Joe Kennedy] se tenha encontrado com algumas pessoas, mas não se conhecem os pormenores”. 
O que se sabe é que recebe nessa altura uma carta do Presidente dos EUA que “acabaria por ser decisiva no desfecho da sua carreira política”. 
Conhecedor da oposição de Kennedy a qualquer ajuda militar ou económica ao Reino Unido, Roosevelt pede-lhe discrição. 
Não deve fazer qualquer declaração pública até que os dois se encontrassem em Washington.

Kennedy cumpre com o que lhe é pedido. 
“Não tenho nada a dizer-lhes, rapazes”, afirma aos jornalistas que o esperam no aeroporto. Depois do encontro com o Presidente, anuncia a renúncia ao cargo de embaixador e, surpreendentemente, assume que vai apoiar a reeleição de Roosevelt, um volte-face que alguns historiadores atribuem à ambição de concorrer ele mesmo à Casa Branca quatro anos depois e esperar que o apoio lhe seja devolvido. 
Porém, poucos dias depois das eleições desse ano, a publicação de uma entrevista onde critica ferozmente os políticos britânicos e afirma que tudo fará para manter os EUA fora da guerra sentencia as suas ambições políticas. 
Nunca mais se livrará da fama de reacionário e de simpatizante nazi.

Daí em diante usa a sua imensa fortuna e os contactos privilegiados para impulsionar a carreira política dos filhos. 
O mais velho, Joseph Kennedy Jr., fora desde cedo preparado para ser o primeiro presidente de origem católica dos EUA, mas, numa trágica ironia, acaba por ser, em 1944, uma das vítimas da guerra a que o seu pai se opusera. 
As expectativas da família em chegar ao poder são então depositadas no segundo filho, John Fitzgerald, que acaba mesmo por vencer as eleições presidenciais de 1960.

O APOIO AOS REFUGIADOS AÇORIANOS


A carreira política de JFK cruza-se com Portugal ainda antes da sua chegada à Casa Branca. 
Em 1958, enquanto senador do Massachusetts, ele é um dos responsáveis por conseguir que os EUA abram a porta a 2500 famílias afetadas pela erupção do vulcão dos Capelinhos, no Faial. 
Na sequência da pressão exercida por vários políticos açorianos locais, o senador John Pastore, um democrata de origem ítalo-americana natural de Rhode Island, propõe ao Congresso o “Azorean Refugee Act” (Lei dos Refugiados Açorianos). 
Três semanas depois, Kennedy junta-lhe o seu apoio. 
“Sendo filho de um emigrante irlandês, de origem católica, era mais sensível às questões relacionadas com a discriminação e a integração das populações emigrantes — ele era a prova de que a integração era possível, ainda que não frequente”, relembra Daniel Marcos, autor do livro “A Erupção dos Capelinhos: Janela de Oportunidade para a Emigração Açoriana”.



                                                                                       

Encontros em 1974, o Senador Ted Kennedy veio a Lisboa a convinte de Mário Soares (5 e esteve no Expresso à conversa com os responsáveis de várias publicações 1: do lado direito da foto, Francisco Pinto Balsemão está ladeado, à sua esquerda, por Marcelo Rebelo de Sousa e Rudolfo Iriarte e, à direita por Jean Kennedy Smith, irmã de Ted, e José Carlos Vasconcelos; do lado esquerdo de Ted, (à esquerda da foto) estão Leonardo Ferraz de Carvalho, Joaquim Letria e António Pedro Ruella Ramos Ramos; carta enviada por Salazar a John Kennedy em Setembro de 1963, 2; JFK e o então embaixador de Portugal nos EUA, Luís Esteves Fernandes, na Casa Branca 3; O poruguês Edmundo Luís 4, Procurador da Justiça no caso da morte da Secretária de Ted Kennedy    


A oposição pública de Kennedy à então lei de emigração — muito restritiva, dando predominância à entrada de emigrantes vindos de países ricos, protestantes, do norte da Europa — e o facto de 1958 ser um ano de eleições intercalares terão, segundo o professor do Departamento de Estudos Políticos da Universidade Nova de Lisboa, contribuído também para o empenho do então senador. 
“Sendo a maioria do eleitorado dele no Massachusetts de origem emigrante (gregos, polacos, irlandeses, italianos e, em menor número, portugueses), o apoio a esta lei poderia ter um retorno político claro, não só para ele, mas também para os seus colegas de partido que se candidatavam nestas eleições”.

Anos mais tarde, em 1963, um grupo de luso-americanos vai à Casa Branca agradecer-lhe. Entre eles está Olivia Goulart, então com 11 anos, que oferece a JFK uma placa em madeira esculpida pelo avô. “Lembro-me de que estava muito entusiasmada por conhecer o Presidente. 
Ele era muito alto. 
Fez-me algumas perguntas sobre a escola e deu-me um pin do “PT 109” [o barco torpedeiro que tinha sido capitaneado por ele na II Guerra Mundial e que foi afundado em 1943 no Pacífico] e uma caneta”, recorda ao Expresso a agora terapeuta familiar.

O DIÁLOGO SURDO COM SALAZAR

A entrada de Kennedy na Casa Branca, no início de 1961, conduz a uma subida da temperatura das relações com Portugal, marcando o período mais difícil desde a II Guerra Mundial. 
O mais jovem Presidente da história dos EUA, de 43 anos, não faz segredo do seu apoio à independência e autodeterminação das novas nações africanas, uma visão que colide com a política colonial de Salazar. 
Ainda como senador, abre a porta do seu gabinete a líderes e nacionalistas africanos, como Holden Roberto, da União das Populações de Angola (UPA), a quem estava ‘prometida’ a presidência de uma Angola independente. 
“Chamem-lhe nacionalismo, chamem-lhe anticolonialismo, chamem-lhe o que quiserem, África está a viver uma revolução”, tinha anunciado durante a campanha eleitoral.

Logo após a eleição presidencial, num telegrama enviado a 9 de novembro de 1960 para Lisboa, o embaixador português em Washington, Luís Esteves Fernandes, regista os seus receios. 
Para o diplomata, a ascensão de Kennedy ao poder significaria a “adoção de uma política anticolonial subordinada ao princípio da libertação de todos os territórios dependentes” e uma “nova era” no relacionamento entre os dois países. 
O embaixador não tinha ilusões: nada seria como dantes na relação com a potência mais poderosa do Ocidente.  

“Salazar representava o ‘velho’ mundo das potências europeias e dos seus impérios coloniais, das ditaduras do período anterior à II Guerra Mundial, de uma Europa que, no fundo, se ressentia da hegemonia americana e da organização bipolar do sistema internacional. 
Kennedy representava uma nova geração, uma lufada de ar fresco na própria política norte-americana, o ‘espírito’ dos anos 60. 
Aquilo a que se assiste a partir daí é a um choque frontal entre estas duas conceções”, explica Luís Nuno Rodrigues, autor do livro “Salazar-Kennedy: A Crise de Uma Aliança”. 
A 15 de março de 1961, no mesmo dia em que é lançada a primeira ofensiva da UPA de Holden Roberto, os EUA colocam-se do lado do grupo crescente de países africanos e asiáticos que nas Nações Unidas condenam o colonialismo português. 
Meses depois, anunciam que deixarão de vender a Portugal armamento que pudesse ser utilizado fora do âmbito da NATO.

Os dois anos seguintes são, porém, marcados por um desanuviar deste ambiente, com um regresso dos americanos a um posicionamento mais moderado. 
A chave desta ambivalência está nos Açores: o acordo para a utilização da base aérea e naval das Lajes, assinado em 1957, cessava no final de 1962 e Salazar não hesita em usá-lo como arma negocial. 
Num clima de agudização da Guerra Fria, a manutenção da base torna-se prioritária, como constantemente lembrarão o Pentágono e o Departamento de Defesa. JFK não se pode dar ao luxo de hostilizar o velho aliado da NATO.

Esta realidade é acentuada pela crise de Cuba, em 1962, com a instalação de mísseis soviéticos apontados aos EUA. 
Quando a crise rebenta, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Franco Nogueira, está Washington para encontros com Kennedy e vários oficiais da Administração americana. 
Anos mais tarde, nas suas memórias, considera que esse foi o momento decisivo da renovação do acordo dos Açores e o progressivo silenciamento dos americanos sobre as colónias portuguesas. 
“Inesperadamente, e parecendo remota, a crise de Cuba constitui o dobrar de uma esquina nas relações bilaterais luso-americanas... 
No pavor de perder o uso da base dos Açores, o Departamento de Defesa impõe, com pressões crescentes, a moderação e até o parcial abandono das políticas radicais da Casa Branca e do Departamento de Estado”.

A LENDA DA COMENDA

Em maio de 1965, ano e meio após o assassínio de JFK, Jackie viaja com os dois filhos, Caroline e John Jr., para Londres, onde marca presença no memorial que a Rainha Isabel II dedicou a JFK em Runnymede, o local da histórica Magna Carta. 
Depois da cerimónia, é esperada na Casa Branca para o batismo do Jardim Este com o seu nome, mas declina o convite. 
Ao invés, segundo revela Jan Pottker no livro “Janet and Jackie: The Story of a Mother and Her Daughter, Jacqueline Kennedy” (“Janet e Jackie: a História de Uma Mãe e da Sua Filha, Jacqueline Kennedy”), instala-se numa villa à beira-mar no sul de Portugal, como tinha sido noticiado a 18 de abril desse ano pelo “Boston Globe”.

Se esteve realmente em Portugal — e onde — permanece uma incógnita, pois não existem registos oficiais da sua passagem pelo país. 
Recentemente, chegou a ser noticiado em alguns meios que terá ficado na Casa da Quinta da Comenda, em Setúbal, popularmente conhecida como Palácio da Comenda, a convite dos então proprietários, os condes D’Armand. 
A lenda aparece associada à comercialização da propriedade por 50 milhões de euros, mas segundo um memorando técnico da Câmara de Setúbal, terá sido a irmã, Lee Radziwill, quem ali fica uns tempos no verão de 1965, na companhia do escritor Truman Capote.  

























REFÚGIO O Palácio da Comenda, na Serra da Arrábida, recebeu em 1965 a irmã de Jackie Kennedy e o escritor Truman Capote


A primeira visita oficial de um Kennedy a Portugal só tem lugar quase uma década depois. Em novembro de 1974, poucos meses após a revolução de Abril, o senador Ted Kennedy vem a Portugal a convite de Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros. Acompanhado pelo conselheiro Robert Hunter e pela irmã, Jean Kennedy Smith, discute a situação do país em encontros com Soares, o Presidente Costa Gomes, o ministro sem pasta Vítor Alves e destacados elementos do Movimento das Forças Armadas. 
Além da Embaixada dos EUA em Lisboa, marca presença na Fundação Calouste Gulbenkian, onde dá uma conferência, e na sede do Expresso, onde conversa durante 80 minutos com Francisco Pinto Balsemão, fundador do jornal, Marcelo Rebelo de Sousa, então administrador da publicação, e vários jornalistas portugueses. 
Segundo escreve o Expresso na época, o senador “veio mais para ouvir do que para falar”, mas fez questão “de elogiar o MFA, de saudar a democracia nascente em Portugal e de prometer o apoio económico do povo americano”. 
Antes de partir, vai com Soares e outros políticos a uma casa de fados em Alfama que é fechada ao público nessa noite. 
É lá que ouve Almeida Santos cantar um fado de Coimbra, Otelo Saraiva de Carvalho um de Lisboa e Cunhal a canção ‘Grândola, Vila Morena’.

Cinco anos antes dessa viagem, o destino de Kennedy cruza-se com o de outro português, Edmund Dinis, um advogado açoriano radicado nos EUA. 
Figura do Partido Democrata em New Bradford, Dinis é um político em ascensão até ser o procurador responsável por investigar o acidente de automóvel que Kennedy tem e que provoca a morte da mulher que viaja com ele, a antiga secretária de Robert Kennedy, Mary Jo Kopechne. 
O caso abala as ambições presidenciais do irmão mais novo de JFK e arruína a carreira política do português, que foi acusado por alguns sectores de ter sucumbido às pressões dos Kennedys: Ted é sentenciado a dois meses de pena suspensa e perde a carta de condução durante um ano por ter abandonado o local do acidente.

Apaixonado pelos cães de água portugueses, é também Ted Kennedy quem oferece a Barack Obama o cão que rapidamente se torna uma sensação da Casa Branca, “Bo”. 
Ao contrário do deste, Ted nunca chega ao lugar mais desejado pelos políticos americanos, mas será para sempre recordado como um amigo de Portugal.





































OS ANOS DOS KENNEDYS

Numa das fotografias da exposição “The Kennedy Years”, John Fitzgerald Kennedy está deitado num barco a ler um livro. À semelhança dos irmãos, o antigo Presidente dos EUA era apaixonado pela navegação e gostava de reler os versos de Eugene O’Neill: “Deitado no gurupés, com o rosto virado para a popa, sentia a espuma sob o meu corpo. Os mastros de velas brancas erguiam-se ao luar, imponentes, por cima de mim. Deixei-me inebriar por essa beleza... Durante um longo momento, perdi-me a mim mesmo. Cheguei a perder a própria vida. Finalmente era livre! Dissolvi-me no mar, tornei-me velas brancas e flocos de espuma.” Imagens de Kennedy no “Victura”, o mítico barco que os pais lhe ofereceram aos 15 anos, ou a ver a Taça América com a mulher, Jacqueline (em baixo), são apenas algumas das 160 fotografias patentes ao público até 9 de setembro no Hotel Le Consulat, em Lisboa. A exposição “The Kennedy Years”, organizada por Frédéric Lecomte-Dieu, que desde 1995 colabora com os acervos dos presidentes dos EUA, reúne fotografias icónicas dos Kennedys e também alguns objetos incontornáveis na história da família: a única cópia do vestido de casamento de Jackie, cuja confeção exigiu mais de seis meses de trabalho e quatro quilómetros de linhas, bem como a cadeira de baloiço de JFK, proveniente do museu com o seu nome em Boston, que servia para aliviar as suas dores nas costas. Nos diferentes espaços da exposição serão exibidos filmes vindos do acervo familiar dos Kennedys. Retratados estão também alguns dos momentos mais marcantes dos 1037 dias da presidência de JFK, incluindo a receção ao casal em Dallas, a 22 de novembro de 1963, horas antes do assassínio do Presidente mais jovem da história dos EUA. Nascia aí o mito JFK. N.M.

sábado, 16 de junho de 2018

Depois do fogo, a força

REPORTAGEM
Semanário de 16 de Junho de 2018
Texto Christiana Martins e Hugo Franco
                                          Fotografia Rui Duarte Silva























Desalento: Maria do Céu Silva, há um ano. na Barraca da Boavista, dois dias depois do incêndio, às 7 horas, vai pela primeira vez ver como ficou a sua plantação de milho

As pessoas de Pedrógão Grande não baixam os braços. 
Perderam familiares e património, mas a região tenta reagir. 
Há novos negócios, gente que escolhe ir para lá viver. 
Depois da surpresa das mortes, o espanto da vida





























Desalento: Maria do Céu Silva, há uma semana, no mesmo local, à mesma hora - o chão está verde, mas nada se salvou da plantação

Por baixo do chão quente, os bolbos de cebola cozem. 
Não choram nem gritam, apenas definham. 
Em Pedrógão, a morte chegou em silêncio. 
Quando o país acordou, já nada havia a fazer. 
Como a água que Maria do Céu Silva insistia em despejar na terra quente — era a última tentativa de salvar a horta da família, à porta de casa, na Barraca da Boavista. 
Sete da manhã de 19 de maio de 2017 e não havia ninguém à vista enquanto D. Céu regava. 
Os que sobraram estavam em casa, a lamber feridas. 
O amanhecer foi mau, mas há menos de 72 horas a noite tinha sido muito pior. 
Fechada com o marido numa despensa, no interior da casa, a mulher de 61 anos ouviu explosões, pensou que iam morrer. 
Não morreram e, passado um ano, à mesma hora, a horta tem serviço para mostrar: couves gigantescas, de um verde quase açoriano, adubadas por muitas cinzas e regadas com outras tantas lágrimas. 
Das cebolas, não sobrou nada. 
Não houve nem água nem esforço que as salvasse: “Morreram todas.”


As cebolas não vingaram, mas D. Céu já completou 62 anos e o marido, José Manuel, 63. E ela continua a trabalhar todos os dias, como há 26 anos, na empresa de madeiras de Mário de Carvalho, o homem que morreu sozinho, numa curva da estrada. 
Ainda trata da contabilidade da sociedade e das contas dos sete funcionários. 
Este ano, já avisou a família: “Não há férias para ninguém.” 
Há muito trabalho a fazer e muitos estragos a recuperar. 
Não há tempo para estancar na tristeza e ficar a lamentar as mortes. 
Ali todos se conhecem, melhor ou pior, e há sempre histórias tristes a contar, mas, avisa a idosa, “não há tempo a perder, temos trabalho para fazer, não podemos parar”. 
Naquele fim de semana em que se viria a descobrir que morreram 65 pessoas, 47 das quais numa estrada nacional a fugir do fogo, Mário de Carvalho foi um dos números desta estatística macabra. 
Madeireiro e um dos grandes proprietários de terrenos florestais da região, com 49 anos, era afilhado de batismo de D. Céu e morreu numa curva da estrada, antes de chegar à EN 236-1, sozinho, enquanto percorria as terras antes cobertas de árvores e depois reduzidas a pouco mais do que pó. 
“Naquele dia do fogo, ele passou por aqui, por volta das 19h20. 
Parou a carrinha e estava desesperado com a perda de um eucaliptal de 40 mil euros, e disse uma frase que não me sai da cabeça: ‘Nem sei o que o fogo vai fazer mais, ele vai maluco.’” 
O maluco ainda o ia matar naquela noite, mas Mário não sabia, embora já o temesse. “Entrou na carrinha, apitou e seguiu”, completa D. Céu.


Não desiste há um ano, não parou nem uma semana para chorar. 
“Dias depois do incêndio, uma das minhas duas filhas trouxe sementes de tudo, e voltámos a plantar tudo outra vez, porque nada se salvaria”, conta. 
Depois de tentar fugir e de dar de caras com o incêndio, voltou para dentro, fechou tudo e ficou a ouvir as explosões das botijas de gás e dos pneus dos veículos da vizinhança. Pensava que nada ficaria de pé, mas dela e do marido ardeu apenas o barracão. 
Só que o ‘apenas’ torna-se enorme. 
É ao falar do pequeno edifício térreo que ela chora pela primeira vez: “Lá dentro estavam todos os nossos equipamentos agrícolas. 
Perdemos tudo, e ninguém nos ajudou. 
Nada vimos dos tão falados donativos, não recebemos nenhum apoio. 
Disse a quem de direito: ‘Repartam, encontrem soluções, mas não deixem ninguém sem ajuda.’” 
Ela diz que ficou sem ajuda, que só pôde contar com ela e com o marido, “que se foi muito abaixo, ainda não arrebitou”. 
As paredes do barracão foram reaproveitadas e o telhado já lá está. 
Tudo pago por ela e pelo marido. 
É quando fala também dos patos, das galinhas e do cão que morreram. 
Apesar de tudo, sabe que tiveram muita sorte — além de sobreviverem, a casa nada sofreu, e salvaram-se o boi e o porco.
























Medo: na noite de 19 de junho, depois de saber da morte de um colega, Pedro Rafael Mendes só se perguntava como um fogo podia ser tão grande. Com quatro companheiros, numa saída da estrada da Louriceira, olhava o fogo à distância.

























Medo: Um ano depois, o muro é o mesmo, o homem também, o cenário é que mudou.

Nunca lhe passou pela cabeça sair dali, virar as costas à terra onde nasceu. 
Diz que os prejuízos são “incalculáveis” e que não voltará a ter o que um dia amealhou. Sobretudo, as árvores, porque “essas, mesmo que as voltemos a plantar, não teremos tempo para as ver crescer”. 
Há um ano, D. Céu aligeirou a conversa com os jornalistas. 
Afinal, ainda tinha de descer a ladeira, ir ver o que acontecera com o campo cheio de milho que tinha lá em baixo e que ainda não tivera tempo de visitar. 
O Expresso fotografou-a nesta busca pelo que plantara. 
Um ano depois, voltou a fixá-la com os pés enterrados no verde dos fetos. 
O chão é verde, mas o futuro nem por isso. 
No rosto da mulher, a preocupação é evidente. 
Afinal, explica, “o pior ainda está por vir, quando daqui a dois anos todas as árvores queimadas tiverem sido cortadas e vendidas e não houver mais árvores para vender”. Ensina que os antigos alertavam que quando se cortavam os pinheiros e os eucaliptos era necessário deixar outros tantos já plantados e em pleno crescimento, para que pudessem ser cortados dali a alguns anos, mas, diz, agora não é possível calcular ganhos futuros, só perdas. 
“E quem mais vai sofrer serão os idosos, que tinham nas árvores um rendimento certo, e não será plantando os castanheiros, de que muito gostamos mas que também arderam e demoram muito mais tempo a crescer, que vamos conseguir esta renda.”

Quem não pode desviar os olhos do futuro é Pedro Rafael Mendes. 
Tem apenas 24 anos. 
Bombeiro na corporação de Ansião desde 2014, lembra-se com detalhe daquela noite de 19 de junho, quando foi fotografado pelo Expresso. 
No meio do nada, para lá das bermas da estrada da Louriceira, sentou-se num muro baixo, dentro da floresta, a vigiar o fogo. 
Na cabeça só conseguia questionar: “Como é possível um incêndio ser tão grande?” 
Nunca tinha visto nada assim, em tão pouco tempo de operacional. 
Pensava na dimensão e na força das chamas e no colega Gonçalo Conceição, o único bombeiro a morrer na tragédia de Pedrógão Grande. 
O cenário da imagem mudou: as árvores que eram enormes desapareceram, o horizonte que parecia distante aproximou-se, e o chão, na altura cheio de caruma, está limpo, é só terra. 
Há árvores recém-plantadas, a continuação do muro já está de pé. 
Nada recria atualmente o ambiente de tensão daquela noite, e Pedro, há um ano o responsável pelo camião de abastecimento, já mudou de vida. 
De tal forma o fogo o tocou que passou a profissional, como membro da Equipa de Intervenção Permanente. 
“Não me vejo a fazer mais nada na vida que não seja combater o fogo. 
Medo temos sempre, mas a necessidade de ajudar as pessoas e proteger as terras é mais forte”, confessa.

Naquele fim de semana, a mãe pediu-lhe que não fosse combater o fogo. 
Teve medo pelo filho. 
E durante muito tempo Pedro e os quatro colegas, com dois camiões, foram os únicos bombeiros nas imediações. 
Apesar de ter estado uma única vez naquele local, lembra-se na perfeição do cenário que o enquadrou na fotografia do Expresso há um ano. 
Recorda-se de terem jantado de madrugada, das poucas conversas entre eles, do ambiente de consternação pela morte de outro bombeiro. 
“Era assustador, e nestes momentos mistura-se tudo na nossa cabeça”, confessa, sublinhando que não se conseguia esquecer de casa, do que deixara para trás. 
E fala da sua aldeia natal, São João de Brito, a cinco quilómetros de Ansião, no distrito de Leiria, “uma zona especialmente crítica”, que pode ver-se confrontada com um incêndio de forma inesperada. 
E ele pode não estar lá, pode estar a ajudar noutro lado.

O efeito das tragédias de 2017 nas forças de combate e de socorro ainda está por divulgar. O relatório encomendado pelo Ministério da Saúde e elaborado pela Comissão de Acompanhamento de Saúde Mental nas regiões afetadas entrevistou 750 pessoas, mas não discriminou os efeitos dos incêndios nas forças de segurança e no pessoal médico. Pedro Rafael é um exemplo das consequências psicológicas das mortes e do risco mesmo entre os profissionais. 
“Ficámos traumatizados, ainda há muito para arder, e temos sempre de pensar na hipótese de ficar alguém para trás, porque nestas situações é tudo muito rápido e pode mudar de repente”, partilha, com os intensos olhos verdes a brilhar. 
“Mudei depois de 17 de junho, vi e tomei consciência de que a natureza é muito forte, há momentos em que se torna incontrolável, e o que marca nestas situações é a brutalidade do fogo”, desabafa.

























Sofrimento: um dos momentos mais pungentes de 2017 foi o funeral de Goçalo Conceição, o bombeiro-herói. Políticos de todos os quadrantes fizeram questão de comparecer, mas, passado um ano, a irmã e os pais de "ASSA" continuam com dúvidas sobre o socorro que lhe foi prestado.


Brutal foi a morte de Gonçalo Conceição. 
Atingiu o país, a Assembleia da República, São Bento e Belém. 
“Assa”, conhecido pelo nome do restaurante que geria, o bombeiro-herói, como foi chamado nos jornais e nas televisões, tinha 39 anos e deixava um filho de 11. 
Integrante da corporação de Castanheira de Pera, estava num camião com quatro colegas quando foram abalroados por um Mercedes. 
Os três ocupantes do veículo ligeiro morreram de imediato. 
Entre os bombeiros, apenas Gonçalo viria a morrer, dois dias mais tarde, na Unidade de Queimados do Hospital Universitário de Coimbra. 
Ao seu funeral compareceu todo o Portugal político, desde o Presidente da República e do primeiro-ministro aos líderes dos partidos da oposição. 
Houve muito choro, muita dor, um sofrimento que continua a derrubar Joaquim e Soledade Conceição, os pais de Gonçalo. 
Uma morte marcada por grande revolta e muitas dúvidas sobre as circunstâncias em que foi prestado o socorro. 
Um processo que não permite que a família faça o luto pela perda da sua figura mais brilhante.

“Gonçalo era a alma da casa, a força, e neste ano que passou tudo mudou para nós”, explicam Joaquim e Soledade, sob o olhar atento de Belmira Morgado, a filha mais velha, que se tem dedicado a apurar, inclusive do ponto de vista judicial, a forma como Gonçalo terá, ou não, sido atendido pelas equipas de saúde na noite do incêndio e nos dias que se seguiram. 
“Ele estava vivo, pediu que dessem água aos colegas antes de lhe darem a ele, foi consciente na ambulância até ser entubado e ventilado. 
Não morreu na EN 236-1 nem foi queimado. 
O que lhe aconteceu?” 
A revolta é ainda maior contra o próprio “Assa”. 
“Porque te deixaste morrer, se nos fazes tanta falta?” 
A pergunta custa a ouvir — e mais ainda custará a dizer — e vem de uma mulher de apenas 58 anos que promete nunca mais tirar o luto. 
Soledade deixou de ser “a menina do Gonçalo”, e ela perdeu a sua “criança grande”. 
Desde a morte do filho, nunca mais rezou, porque não pode orar a alguém cujo sentido de justiça diz não conseguir compreender. 
E a dor irradia de mãe para pai, de mulher para marido. 
“Os colegas dele estão cá, alguns encontravam-se em muito pior estado do que ele. Porque não o Gonçalo?”, questiona Joaquim, igualmente de negro perpétuo.

Uma morte tão mais brutal e assustadora porque Gonçalo sempre se conseguira salvar no limite. 
Acostumara mal a família. 
Mas o calendário não permite sossego. 
No dia 25 de agosto, Gonçalo não estará mais na comissão de organização da Festa do Senhor, em Castanheira de Pera. 
Mas a sua ausência será justamente a razão da presença de Tony Carreira. 
Admirador do cantor, Gonçalo nunca conseguiu levá-lo à sua terra, mas a participação de Tony nas comemorações está agora confirmada. 
Porque o tempo continua a somar dias uns atrás dos outros, indiferentes às lacunas que algumas pessoas deixam nas comunidades onde vivem. 
Naquela família, a luta diária é pela manifestação de força. 
Todos têm de se mostrar fortes, para que ninguém se deixe derrubar pela tristeza. 
“Nunca quisemos ter apoio psicológico, apoiamo-nos uns aos outros”, explica Soledade. 
E brindam. 
Todas as vezes que se sentam juntos à mesa, os copos erguem-se e, baixinho, sussurram o nome de Gonçalo. 
Foi a forma que encontraram para continuar, para seguir em frente.

RENASCER DAS CINZAS

As curvas e contracurvas em direção à pequena cascata da ribeira do Caldeirão, perto de Figueiró dos Vinhos, fazem-se sem os picos de ansiedade de há um ano, quando os fogos devoravam cada centímetro de floresta. 
A chuva e a neblina contrastam com o calor e os ventos quase tropicais de junho de 2017. O violento crepitar das chamas foi substituído por um silêncio bucólico. 
Os sorrisos abertos são também uma expressão renovada para quem perdeu familiares, amigos, vizinhos. 
Bruno Catrau, de 39 anos, ainda faz o luto de um dos seus melhores amigos, o bombeiro Gonçalo “Assa”, com quem estaria hoje a jogar futebol em campeonatos amadores não fosse a tragédia ter-se espalhado a sete ventos naquele sábado negro. 
“Naquele dia, ele não pôde ir connosco ao torneio que jogámos no norte do país”, lembra o professor de Educação Física e empresário da Parede (Cascais), que se mudou para a região há mais de uma década.
























Empreendedores:  o português Bruno Catrau quer transformar um antigo lagar num SPA de Luxo

Quando a equipa regressou a Figueiró dos Vinhos naquela noite, já as chamas espalhavam a morte por todo o lado. 
“Ouvíamos na rua que havia dezenas de pessoas falecidas, mas não acreditávamos, julgávamos serem apenas boatos”, conta Bruno Catrau, que foi imediatamente proteger a casa do sogro. 
O pior confirmou-se nos dias seguintes. 
“Era com o Gonçalo que ia ter sempre que precisava de falar.” 
Sobre tudo. 
Sobre nada.

As chamas levaram também o melhor amigo do filho de 5 anos, juntamente com quase toda a família. 
O fogo desapareceu, surgiram depois as cinzas, e com elas os pequenos rebentos que cobrem hoje os terrenos em várias tonalidades de verde. 
“O tempo está a ajudar a cicatrizar todas as nossas feridas. 
Os incêndios acabaram também por fazer redobrar a vontade em fazer algo pela região.” 
O empresário não é fatalista e recusa-se a desistir. 
Pelo contrário, já teve várias oportunidades de ir trabalhar para fora de Figueiró. 
Mas resistiu. 
Admira a qualidade de vida que ganhou nos últimos anos. 
“Os meus filhos crescem num ambiente saudável, têm amigos, são felizes. 
Nós também.”


Bruno Catrau fala em frente a um terreno que comprou há 12 anos, por onde passam as ribeiras de Alge e do Caldeirão, entre uma antiga fábrica de lãs, um lagar e duas mansões cobertas de vegetação e a precisar de obras. 
É ali que planeia construir um spa e um turismo rural, um projeto que ainda não tem investidores mas que já conta com o primeiro prémio do Re-Nascer Challenge, uma iniciativa que promete fazer mudar o ADN de todo o Pinhal Interior.

Vão ser precisos dois milhões de euros para transformar terrenos férteis mas ao abandono em solos para agricultura biológica, que servirão para alimentar os futuros hóspedes aos almoços e jantares e até para produzir óleo para massagens.

Não é preciso fechar os olhos para imaginar o futuro onde as velhas cubas de azeitonas se transformam em reluzentes banheiras de hidromassagem. 
Se os abrirmos a poucos quilómetros de distância, já no centro de Figueiró, teremos um vislumbre do que pode ser o amanhã. 
Um edifício branco, de aspeto moderno, apetrechado com tecnologia de ponta, ainda a cheirar a novo, é uma obra de dois filhos da terra que se cansaram de ver o concelho associado à morte ou aos hectares queimados a perder de vista. 
“Há coisas que fazemos por dinheiro e outras que fazemos por amor. 
E foi por amor que criámos este projeto”, conta Marisa Violante, especializada em medicina física de reabilitação.
























Empreendedores: Marisa Violante já trabalha na sua clínica em Figueiró dos Vinhos

A clínica que a médica de 35 anos e o irmão Luís, oftalmologista, abriram em Figueiró dos Vinhos há cinco meses foi pensada sobretudo, mas não só, para a população mais envelhecida e que trabalha nas fábricas de madeira que se multiplicam ali e nos concelhos vizinhos. 
“Até agora estas pessoas, que eram vítimas de lesões musculares e esqueléticas causadas pelo trabalho, eram obrigadas a viajar de propósito para Coimbra ou Leiria”, lembra.

Saúde de proximidade. 
Marisa Violante não se cansa de repetir o lema. 
E não só nas áreas da reabilitação física ou da oftalmologia. 
A clínica foi feita também para os que sofrem de problemas cardíacos, dos ouvidos, da pele ou de foro psiquiátrico. 
Todos eles podem ser seguidos por um especialista a poucos quilómetros de casa. 
Algo que seria impensável até há poucos meses. 
“O investimento foi elevado, mas o risco é assumido”, confessa Marisa Violante. 
Daqui a dez anos ambiciona que o negócio de família se transforme em algo maior, com mais impacto para os outros filhos da terra e das redondezas.

Apesar de ser recente, a clínica já atendeu várias das vítimas que foram atingidas pelas chamas no último verão e que recuperam das queimaduras. 
Os traumas físicos e psicológicos não vão ser fáceis de ultrapassar, mas, apesar de ser uma pessoa da ciência, a médica tem um discurso que não esconde uma boa dose de fé. “Os incêndios criaram em nós uma vontade de dar outra dinâmica à terra. 
De seguirmos em frente e arriscarmos.”

Mas não são apenas os filhos da terra que demonstram um amor incondicional à região e que enfrentam de olhos semicerrados a incógnita criada pela destruição. 
No sentido inverso da razão, Ana Raquel Borges mudou-se de Lisboa para a zona do Pinhal Interior já depois de os fogos terem mostrado que conseguiam arruinar em segundos as obras mais perenes do Homem. 
A jovem de 28 anos, mãe de três crianças e formada em Artes e Design, teve uma motivação extra que também veio do fundo do coração. 
No verão de 2016 fez turismo em Figueiró dos Vinhos, visitou os locais da praxe, e quando acabou as férias já não era a mesma pessoa. 
“Apaixonei-me pela região e conheci aqui o amor da minha vida, o meu marido, que é de cá.”
























Empreendedores: Carolina Gama prepara-se para gerir uma loja online de produtos regionais

A 17 de junho de 2017 estavam acampados em Castanheira da Pera e viram a destruição a acontecer em direto, embora sem nunca correrem risco de vida. 
“Desolação” é o substantivo que escolhe para o que viu e sentiu na manhã do domingo depois da passagem incontrolada das chamas.

O casal já tinha em mente uma mudança de vida, desejo que foi apressado por tudo o que vivenciaram na semana mais negra da região centro. 
À primeira vista, parece até paradoxal. 
Mas não é. 
Em vez do medo, veio o desafio. 
“O fogo fez desbloquear algo que já andávamos a planear. 
Fez tudo acelerar”, tenta explicar Ana Raquel Borges.

Desde novembro que vivem em Figueiró. 
O marido é jardineiro e faz limpeza de matas em muitas propriedades de pessoas que foram atingidas pelos incêndios do ano passado. 
Quanto a Ana Raquel Borges, sempre sonhou abrir uma mercearia com frutas e legumes biológicos. 
No final do ano, prevê que consiga chegar lá. 
Para já, vende alguns desses produtos em mercados locais ou por encomenda. 
“Em pouco tempo fizemos muitas amizades. 
As pessoas de cá são muito carinhosas. 
Estamos cá de corpo e alma.” 
Tão cedo não se vê noutro local. 
As suas paixões continuam acesas, como no já longínquo verão de 2016.

MINICASAS E QUEIJO DE CABRA

O lugar-comum que temos de um nórdico que vive no meio de quase nada, longe da civilização, assenta na perfeição no entrepreneur Sammy van den Berghe. 
Características físicas: alto, magro, roupa prática. 
Traços de personalidade à vista: alguma timidez compensada com conversa rápida, numa mistura de frases em português, inglês e francês, espírito prático, do mais pragmático que se poderia encontrar em Bruges, de onde é natural. 
Não sem algum humor e despretensão à mistura.

O belga esteve quase para desistir de Pedrógão Grande nos meses que se seguiram aos fogos. 
Por sua vontade, tinha vendido tudo, feito as malas e regressado à Bélgica. 
A rota inversa que fez há 12 anos. 
“Com o incêndio, ardeu toda a minha motivação”, queixa-se, pesaroso, quando se recorda desses tempos.

As chamas cercaram o enorme armazém onde constrói minicasas em madeira como atrelados, batizadas de Tiny Houses, e a que nós poderíamos designar de autocaravanas de luxo. 
Algumas custam cerca de 20 mil euros. 
O fogo consumiu tudo o que tinha em redor e só não entrou no edifício por este ter sido construído com material não inflamável. 
Ainda assim, Sammy perdeu milhares de euros, porque à volta do armazém havia atrelados e caravanas de madeira (importada da Suécia) que ficaram reduzidas a cinzas. 
“Quis desistir, mas as pessoas da região deram-me um grande apoio. 
Estou de novo motivado e acho que no bom caminho”, explica.

Olha para os amigos, colegas e vizinhos com a objetividade típica de quem cresceu a dois mil quilómetros de distância. 
As virtudes e os defeitos serão mais fáceis de apontar por quem não cresceu numa zona rural, isolada, periférica, habituada a ser uma segunda escolha do poder central. 
“Antes, isto era uma jungle, uma confusão. 
Cada um por si”, diz, quando se recorda da atitude de alguns que se recusavam em limpar os terrenos em redor para evitar tragédias maiores.

Para o belga, o 17/6 não trouxe só coisas más. 
Já se consegue aperceber de diferenças, algumas abissais. 
“Notei que muitos fizeram um reset. 
Conseguiram começar de novo. 
Tornaram-se mais responsáveis, nomeadamente no cleaning da floresta.”

Encontrámos o seu armazém, já pintado e sem marcas da combustão, perto de Vila Facaia, uma das aldeias que mais sofreu com a tragédia, onde morreram 13 pessoas. 
Lá dentro, Sammy já tem uma autocaravana de luxo pronta a seguir viagem. 
E uma série de encomendas em lista de espera. 
Trabalho não lhe falta. 
Os clientes são sobretudo estrangeiros que residem em Portugal, mas também há franceses à espera, em Paris, de um modelo fabricado em Pedrógão Grande. 
Todos eles sonham com evasão, viagens por toda a Europa nestas casas sobre rodas que são anos-luz mais confortáveis e menos claustrofóbicas do que as tradicionais rulotes ou autocaravanas. 
No que diz respeito ao belga, irão concretizar os seus desejos. 
É que ele não sairá de Pedrógão tão cedo. 
E tem muitas minicasas para construir com a ajuda de carpinteiros locais.
























Empreendedores: o belga Sammy Van Den Berghe constrói minicasas em Vila Facaia

Este projeto de Sammy van den Berghe foi uma das 16 candidaturas recebidas na primeira edição do Re-Nascer Challenge. 
Uma iniciativa nascida na cabeça de Feliciano Roldão e de outros empresários portugueses e americanos com a missão de voltar a pôr de pé a economia e a autoestima da região. 
“Já não bastava enviar roupa, eletrodomésticos ou comida para Pedrógão. 
Era preciso mais”, relata o empresário, que é natural da região mas trabalha em Loures.

Esta união de empresas, autarcas e agentes locais — Feliciano Roldão prefere a expressão networking — vai ainda no início, mas promete resultados práticos. 
Há mais três projetos em curso: o Re-Nascer Hub (uma incubadora de start-ups locais); mais edições do Re-Nascer Challenge para atrair novos empreendedores; e uma conferência (“uma summit”) dedicada ao interior já com data marcada para 3 de novembro. Inspirado talvez pelos festivais de rock, o evento também terá um palco principal, “para falar, inspirar e debater”, e um outro secundário, “onde estarão autarcas a debater os assuntos quentes da região num modelo de Prós e Contras”.

O futuro passa pela discussão. 
Mas são mais as perguntas do que as respostas. 
Se por acaso alguém perguntar a um qualquer presidente de uma junta do Pinhal Interior se os incêndios se combatem só com homens e mulheres, ele saberá responder que não. Há muito que as cabras sapadoras são utilizadas para limpar os terrenos, de modo a evitar mais fogos. 
Estes animais são uma espécie de arma secreta do alemão Manfred Markl, que vive há 34 anos num lugarejo sem nome não muito afastado de Pedrógão Grande. 
O combate às chamas não é o único atributo destas cabras que pastam nas traseiras da sua casa. 
O germânico franzino produz um dos queijos curados mais apreciados nas redondezas. 
Era quase um segredo local até ao momento, mas vai deixar de o ser em breve. 
Tudo porque os queijos de cabra serão uma das estrelas na montra da loja online Sabores de Cá, criada por Carolina Gama, de 26 anos. 
A partir do dia 20, qualquer pessoa poderá adquiri-los à distância de um clique. 
“Vou expor e vender todo o tipo de produtos da região: mel, enchidos, vinhos, bolos, biscoitos ou aguardente de medronho”, conta a jovem, formada na área de produção alimentar.

Antes do fogo, o seu negócio era tímido, porque não tinha mãos para tantas encomendas nem meios de as escoar. 
Depois das chamas, parece ter ganhado um novo fôlego. 
“Apercebi-me no último verão de um interesse acrescido pelo que é produzido cá. 
Pelos sabores de cá.” 
Num piscar de olhos, aliou-se a vários produtores, como Manfred Markl. 
Sozinhos, estes homens e mulheres produziam para um punhado de pessoas sem certezas de amealhar dinheiro para o mês seguinte. 
Juntos, com o poder das novas tecnologias, podem sonhar com uma vida renascida das cinzas.