MÁRIO SOARES
Nuno Ribeiro
7 de Janeiro de 2018, 7:00
Para Mário Soares, “a alegria de viver impunha-se”.
Até ao fim do ano, será publicado o primeiro volume das Obras Completas do antigo primeiro-ministro e ex-Presidente da República.
“Escrever era do que ele mais gostava”, garante o organizador da edição
A partir de hoje e até 10 de Junho na capela do Cemitério dos Prazeres está patente uma exposição de fotografias publicadas na imprensa das cerimónias da despedida de um homem que sempre andou à caça da felicidade.
“Que se chame dos Prazeres a um cemitério acho perfeito desde que Mário Soares lá está. E só enquanto lá estiver.
Porque foi um homem que nasceu para ser feliz.”
A citação é de António Lobo Antunes, um dos autores da pequena antologia de textos Como Assim, Mário?, publicada no ano passado.
E sintetiza com mestria o que parece uma contradição: a morte nos Prazeres como o fim de uma vida feliz.
“Mário Soares não aceitou ser vivido pela vida — foi ele que a viveu.
E também não aceitou ser morto pela morte — foi ele que foi morrendo, antes de ela o vir matar”, escreve José Manuel dos Santos, assessor presidencial de décadas, amigo e comissário da exposição num texto intitulado Um Adeus Português.
Há anos, com Soares convalescente, certificava ao PÚBLICO aquilo de que já suspeitávamos.
Que o antigo Presidente teve uma vida ímpar de combates e felicidade: “A maior parte das horas da sua vida foram felizes.”
Agora, nas vésperas da inauguração da exposição de fotografias da imprensa, que incluem trabalhos dos repórteres do PÚBLICO Daniel Rocha, Rui Gaudêncio, Nuno Ferreira Santos e Enric Vives-Rubio, insiste: “Mário Soares era assim, queria ter momentos felizes, fazer de cada coisa uma oportunidade para ser feliz, a alegria de viver impunha-se, mesmo perante a adversidade.”
Para os menos íntimos, desatentos e para a história apressada, esta caça da felicidade passou como e por bonomia.
Num misto de à-vontade desmedida, uma coragem de desassombro ou um poder de comunicação avassalador.
Para tal, contribuíram os media com a narração de episódios e legendas do turbilhão da política.
O candidato que beijou por acaso um anão que estava na fila das saudações.
O dirigente de cara cheia ao qual um beliscão de ternura e incentivo de um militante baptizou com o cognome de “bochechas”.
E como não recordar os recorrentes bailes de malícia com as varinas da Nazaré?
Mas a busca da felicidade não era um acaso apenas para instantâneos fotográficos.
E, muito menos, produto de campanha destinada ao consumo eleitoral.
“Acho que Mário Soares era um stendhaliano; Stendhal dizia que o carácter de um homem se define pela forma como vai à caça da felicidade”, refere o antigo assessor cultural.
E Soares perseguiu-a.
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Mário Soares com Miguel Veiga, em Matosinhos, em 1990
Tertúlia mensal de padres
“Toda a vida de Mário Soares foi a insistência, sem medo, sem medida e sem meta, nessa liberdade que a vida dá e a morte tira”, refere Santos.
“Vivia muito dos sentidos, mesmo nos seus últimos tempos continuava a gostar de ir ver o mar”, recorda.
“Viveu sempre com gente à volta encantada por ele, condição e práxis da condição de líder”, relata.
“Gostava imenso de se dar com aqueles que eram diferentes dele, era ele que os mobilizava, não o contrário”, exemplifica José Manuel dos Santos a propósito de um hábito desenvolvido nos últimos anos de vida do antigo Presidente: uma tertúlia mensal na sua casa, com refeição incluída, com quatro sacerdotes.
À mesa estavam os padres Vítor Feytor Pinto e Vítor Melícias, D. Januário Torgal Ferreira, então bispo emérito das Forças Armadas, e Frei Bento Domingues, companheiro de várias lutas.
“Mário Soares repetia muito a expressão: ‘A fé é um dom de Deus que não recebi’”, revelou ao PÚBLICO o padre Feytor Pinto: “Foi um laico profundamente ecuménico, teve relações com a Igreja através do cardeal Agostino Casaroli, secretário de Estado do Vaticano, com quem teve reuniões sobre a descolonização, e participou no espírito de Assis, reunião de dezenas de dirigentes mundiais com João Paulo II para a construção da paz.”
A busca da paz era uma iniciativa ecuménica em tempos conturbados, portanto com fundo político e social.
Os encontros com Casaroli e o então cardeal-patriarca de Lisboa, António Ribeiro, decorreram durante o Verão Quente de 1975, no denominado PREC [Processo Revolucionário em Curso], uma das fases mais agudas do pós-25 de Abril.
Foram, assim, política, pura e dura, em atmosfera de afabilidade que criou laços de amizade entre o laico socialista e o diplomata do Papa.
Na tertúlia mensal da sua residência ao Campo Grande, em Lisboa, era celebrado um ritual. “Quando terminava a reunião, levava-nos sempre ao seu escritório e mostrava-nos as fotografias do pai vestido de sacerdote”, conclui Feytor Pinto.
Eram duas as fotografias do republicano João Soares que estavam visíveis: uma enquanto sacerdote, outra depois de abandonar os hábitos.
Em Mário Soares, José Manuel dos Santos anota ainda um instinto vital, que caracteriza como nietzschiano, ou seja, a existência de um homem positivo.
“Tal como Stendhal, sabia que a morte era inevitável, por isso a esquecia, ele sabia que a morte existia mas não queria saber.”
No seu texto para o catálogo da exposição, José Manuel dos Santos refere que o antigo Presidente “fazia da vida uma felicidade íntima e uma exaltação exclamada, não falava da sua morte e dos acontecimentos que a seguir se dariam, mas sabia que somos tempo e que a morte é, desse tempo, o fim.
Olhava a morte com uma indignação distraída ou com aquela aproximação longínqua com que se olha a queda dos graves e se conhece a lei que a rege”.
E, também, a sua inevitabilidade.
A cultura como transmissão
Na política, o testamento é legado.
O político trabalha sabendo que se pode perpetuar no futuro, ao ponto de antever o seu lugar na História se poder transformar numa obsessão.
Mesmo que dissimulada pelas urgências e realizações do tempo presente, pela pressão da actualidade.
“O grande político é complexo e contraditório, na sua personalidade há opostos.
Nas pessoas ‘normais’ isso paralisa e enfraquece, na política há a harmonia dos opostos, um espírito de firmeza”, diz o assessor de 20 anos em Belém, de Mário Soares a Jorge Sampaio.
“De Soares é possível dizer tudo e o seu contrário, dizer que foi frio e caloroso, mais que caloroso, referir que foi generosíssimo e egoísta, afirmar que foi muito flexível e inflexível em relação a algumas questões fundamentais”, prossegue.
Contudo, ao contrário do seu amigo François Mitterrand, que preparou tudo meticulosamente, a régua e esquadro, Soares não tentou influenciar os acontecimentos do day after.
Segundo José Manuel dos Santos, foi omisso: “Não regulou os tempos e os modos das suas exéquias, não teve vontades para quando já não tivesse vontade, nada disse ou escreveu sobre um futuro que já não era o seu.”
“Nunca vi nele nenhum gesto ou acto artificial premeditado para a História, embora tivesse o culto da memória"
Encontrar o lugar na História estava implícito como fruto do seu caminho, dos seus actos. Nas conversas da década em Belém e já nos anos de pós-presidência, a ideia de ter o seu nome gravado nas esquinas das ruas não o seduzia.
Considerava-o já morte, embora o próprio admitisse como inevitável a sua inscrição na toponímia.
No entanto, com reserva de afecto, há quem insista que adoraria estátuas com o seu perfil e avenidas com o seu nome.
Contradições numa personalidade de opostos.
“Nunca vi nele nenhum gesto ou acto artificial premeditado para a História, embora tivesse o culto da memória.
Nas presidências abertas fazia sempre o culto da memória das pessoas e acontecimentos que tinham ligação com o local onde estávamos”, observa quem foi seu assessor.
“Mário Soares explicou-se nos livros, nos artigos, na correspondência, tinha confiança no que tinha feito, mas não planeou excessivamente o futuro, deixou as coisas seguirem o seu curso.”
Com uma excepção: a escrita. “Soares achava que um grande político era um grande escritor político, como as grandes figuras que admirava, de Winston Churchill a Georges Clemenceau”, prossegue José Manuel dos Santos.
A paixão da escrita era confessada pelo próprio.
No seu livro Incursões Literárias (editado pela Temas e Debates) afirma que o pai sempre lhe aconselhara a ser escritor: “Pretendia que eu tinha alguma facilidade para escrever e realmente tinha, talvez demasiada, penso hoje, para poder ter sido, alguma vez, um bom escritor.”
Com inesperada franqueza, revela: “Sempre tive, talvez, uma visão literária da vida e das personagens, romanescas ou não, que encontrei no meu caminho.”
No mesmo livro publicado em 2003, depois de dez anos de Belém e de décadas na política, confessa uma saborosa transgressão: “Adquiri o hábito de inventar histórias, totalmente ficcionadas, de pessoas que conheci e, por esta ou aquela razão, me interessavam.”
O artesão da escrita tinha tempos definidos.
“Ele escrevia muito, era do que mais gostava.
Chegava ao Palácio de Belém por volta das 10h30 depois de já ter estado a escrever em casa”, refere José Manuel dos Santos.
“Há muita coisa inédita ou dispersa, a grande dificuldade vai ser organizar os milhares de páginas que estão escritas porque, de facto, ele passou a vida a escrever.”
Deste relato desagua a notícia.
Até ao fim do ano, com a chancela da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, é publicado o primeiro volume das Obras Completas de Mário Soares.
Uma edição cuidada, com uma comissão de honra, um conselho científico e outro editorial em fase de constituição.
“A publicação póstuma dos seus escritos seria, para o próprio, a melhor homenagem, até porque, segundo ele, a sua vida e acção foi um acto de pedagogia democrática”, considera o antigo assessor.
“Desde o início da sua vida que Soares teve sempre o reconhecimento de que a cultura é transmissão, que as coisas não começam connosco nem acabam connosco.”
nribeiro@publico.pt
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