quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

A Síria e o grande jogo no Médio Oriente

OPINIÃO
José Pedro Teixeira Fernandes
1 de Fevereiro de 2018, 13:23

Bashar al-Assad deve a sua permanência no poder — e a vitória militar — fundamentalmente à Rússia, mas também ao Irão e seu prolongamento libanês, o Hezbollah. 
Mas não vai ser nada fácil pacificar a Síria e reconstruir a sua sociedade.

1. Quando se olha para o Médio Oriente actual fica a sensação de estarmos a assistir a um “grande jogo”, no sentido que se dava à expressão no século XIX. 
Nessa época, foi a designação dada ao conflito político-diplomático e à rivalidade estratégica entre o Império Britânico e o Império Russo pela supremacia na Ásia Central. 
Os britânicos procuravam barrar os avanços da Rússia para Sul, criando um perímetro de segurança a Norte da Índia, no Afeganistão. 
Usavam ainda o Império Otomano e o Império Persa como Estados-tampão. 
Hoje está em curso um grande jogo pela supremacia Médio Oriente. 
Face ao que decorreu no século XIX, apenas Rússia continua como protagonista maior. 
O Reino Unido, tal todas as potências europeias, é hoje um actor secundário nas grandes questões mundiais. 
Nesta altura, após vários anos de guerra, é a Síria que está no centro da competição pela supremacia no Médio Oriente. 
Na cidade russa de Sochi estão a decorrer negociações para um entendimento político. 
O Presidente russo, Vladimir Putin, é o anfitrião de conversações de paz que contam com a participação do Presidente sírio, Bashar al-Assad, da Turquia, do Irão e do enviado especial das Nações Unidas para a Síria, Staffan de Mistura. 
Todavia, a maioria dos grupos da oposição a Bashar al-Assad opuseram-se à iniciativa russa, recusando-se a participar nas conversações de paz.

2. Como será a Síria após o fim da guerra? 
Como será repartido o poder internamente? 
E, em termos externos, quem terá a maior influência na Síria pós-conflito? 
Não há qualquer dúvida que Bashar al-Assad deve a sua permanência no poder — e a vitória militar —, fundamentalmente à Rússia, mas também ao Irão e seu prolongamento libanês, o Hezbollah. 
Mas não vai ser nada fácil pacificar a Síria e reconstruir a sua sociedade. 
As feridas da guerra vão continuar abertas durante muitos e longos anos dado o elevado grau de violência que atingiu no conflito iniciado em 2011, na sequência das revoltas da "Primavera Árabe". 
Internamente, há divisões profundas entre os pró Bashar al-Assad e aqueles que se opõem à sua continuação no poder. 
Para além dessa clivagem política óbvia, a sociedade síria assemelha-se a uma manta de retalhos religiosa e étnica. 
Nela encontramos divisões religiosas dentro do Islão que é dominante (sunitas, xiitas / alauítas) e fora dele (cristãos, yazidis, drusos, etc.), e étnicas (entre árabes, curdos, turcomanos, etc.). 
Essas divisões identitárias, que são componentes antigas do mosaico populacional sírio, foram acentuadas — e a coexistência pacífica largamente prejudicada —, pelas atrocidades da guerra e vinganças entre grupos.

3. Externamente há múltiplos interesses contraditórios sobre a Síria que a tornam, como já notado, num dos pontos críticos do grande jogo no Médio Oriente. 
Nesta altura há um entendimento entre a Rússia, o Irão e a Turquia. 
Mas é conjuntural e pragmático, sobretudo no caso da Rússia e da Turquia, não é baseado numa convergência profunda e permanente de interesses de longo prazo, pelo menos para já. 
No caso da Rússia, há uma vontade clara de traduzir os ganhos militares em ganhos políticos, afirmando, assim, o seu regresso como grande potência mundial e actor de primeiro plano no Médio Oriente. 
Procura obter também um reconhecimento internacional, especialmente das Nações Unidas, sobre as negociações de paz que decorrem em Sochi, das quais é a principal impulsionadora. 
Por razões internas, o timing é igualmente importante para Vladimir Putin, pois 2018 é ano de eleições presidenciais na Rússia. 
Quanto ao Irão, está envolvido numa luta pela supremacia sobre o mundo islâmico, centrado no Médio Oriente, onde o seu principal inimigo é a Arábia Saudita e seus aliados do golfo (e fora dele, especialmente os EUA). 
A disputa tem outros pontos de atrito importantes na região como o Iémen. 
Quanto à Síria, permite ao Irão criar uma espécie de continuidade xiita até ao Mediterrâneo, colocando o Iraque, a Síria e o Líbano (através do Hezbollah), sob a sua influência. 
É, por isso, uma peça fundamental da sua estratégia de afirmação como potência regional.

4. A Turquia tem a sua própria agenda estratégica. 
Fundamentalmente duas coisas marcam a sua ambição sobre a Síria: uma oposição aos curdos e a vontade de tornar os territórios ex-otomanos numa zona de influência. 
Quanto à questão curda, que envolve populações curdas de ambos os lados da fronteira, bem como nas zonas contíguas do Iraque e Irão, o problema é particularmente complexo. Os curdos da Síria (e do Iraque) foram os principais e mais credíveis opositores ao Daesh. Mas, para a Turquia, não era esse o inimigo. 
As Unidades de Protecção Popular (YPG), as milícias curdas que combateram o Daesh, são próximas do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) de Abdullah Öcalan. 
A estratégia da Turquia, tal como de todos os outros Estados da região com populações curdas, tem sido sempre negar a especificidade curda, e, mais ainda, quaisquer pretensões de autodeterminação / independência política. 
Assim, procura agora criar uma espécie de cordão sanitário na parte Sul da sua fronteira. 
A recente campanha militar em Afrin — ao que tudo indica negociada nos bastidores com a Rússia, que controla o espaço aéreo —, sugere essa estratégia. 
Mas Recep Tayyip Erdogan pode ter ainda em vista algo mais ambicioso: enviar os refugiados sírios que estão no seu território, ou uma parte destes, para essa região fronteiriça. 
Isso permitiria à Turquia afastar as revindicações curdas de autonomia / independência na zona contígua da Síria, pois com essa deslocação em massa os curdos ficariam em minoria no seu próprio território histórico.

5. A paz na Síria passa também pela estratégia de outras grandes potências mundiais. 
Os EUA, como potência global, sentem um “direito” de intervenção na questão Síria. 
No seu caso, a questão tem diversas matizes. 
Por um lado, a Síria nunca esteve sob a sua influência, nem no passado anterior à guerra iniciada em 2011, nem durante a Guerra-Fria, onde era um aliado da União Soviética. Neste sentido, para os EUA não está em causa perder influência sobre um território onde nunca a teve. 
Todavia, como já foi referido, a Síria é uma peça incontornável do complexo puzzle do Médio Oriente, onde está em curso um novo grande jogo. 
Na oposição sunitas / xiitas — uma linha maior de rivalidade e conflito no Médio Oriente — os aliados dos EUA estão do lado dos sunitas (Arábia Saudita, Qatar, Koweit, Emiratos, Turquia etc.). 
Quanto a esta última, a Turquia, como já notado, situação é bastante paradoxal. Teoricamente é um aliado dos EUA através da NATO. 
Mas, neste momento, as divergências entre ambos são demasiado evidentes: a Turquia faz um jogo de alianças com potências rivais e/ou inimigas dos EUA, como a Rússia e o Irão. Para além de se opor à continuação de Bashar Al-Assad no poder (aí está fundamentalmente em sintonia com os EUA), a Turquia apoia grupos e milícias islamistas que combatem os curdos da Síria. 
Recep Tayyip Erdogan qualifica os curdos do YPG como “terroristas”, uma designação usual na sua retórica agressiva contra todos os que se lhe opõem. 
Mas as forças curdas têm sido o principal e mais fiável aliado dos EUA no terreno militar e o seu principal veículo de influência no conflito da Síria. 
O conflito de interesses entre a Turquia e os EUA é incontornável nesta altura.

6. Há ainda o caso de Israel. 
Mas o que quer Israel da Síria quando esta voltar à normalidade após a guerra? 
Desde logo, um poder fraco no país. 
Uma Síria relativamente forte e com ambições de potência regional, como acontecia nos tempos de Hafez al-Assad, não é claramente do interesse de Israel. 
Como também não é uma Síria transformada numa base de operações militares para o Irão e o seu aliado libanês, o Hezbollah. 
É aliás essa possibilidade que, nas actuais circunstâncias, mais incomoda o governo de Benjamin Netanyahu, não a permanência, em si mesma, de Bashar al-Assad no poder. Esta só é problemática na medida em que se este apoie no inimigo iraniano e lhe dê facilidades militares permanentes no seu território. 
Já o caso da Rússia é diferente. 
Estão longe as tensões da Guerra-Fria que colocaram durante a maior parte desse período a União Soviética no campo dos maiores inimigos de Israel. 
Hoje existem, de forma pragmática, relações com a Rússia baseadas numa aceitação dos interesses de segurança da cada Estado e em trocas comerciais em crescendo. 
Um factor de aproximação relevante é a boa relação pessoal que parece ter-se criado entre Vladimir Putin e Benjamin Netanyahu. 
Para além disso, a forte comunidade de judeus israelitas com proveniência de territórios ex-soviéticos funciona com um outro factor de aproximação entre ambos.

7. É prematuro antecipar nesta altura se as conversações de paz de Sochi vão produzir alguns resultados políticos palpáveis, ou serão inconsequentes. 
Em qualquer caso, o grande jogo vai continuar. 
Tudo indica que a Síria vai permanecer no centro do complexo puzzle do Médio Oriente durante bastante tempo. 
As apostas dos principais actores externos foram demasiado elevadas, e os seus interesses são também demasiado contraditórios, para existir uma qualquer saída de compromisso fácil. 
No caso da Rússia, o seu regresso ao Médio Oriente, via Síria, dá-lhe a ambição de substituir, pelo menos em parte, a influência norte-americana na região. 
Quanto à Turquia, a sua aposta é também elevada. 
Resta saber se estamos a assistir ao início do fim do seu alinhamento com os EUA e a NATO, e a um realinhamento estratégico permanente com a Rússia e o Irão, ou a algo meramente conjuntural. 
Também para último Estado, o Irão, uma vitória militar e política na Síria é crucial para se afirmar contra a Arábia Saudita e os seus aliados, EUA incluídos. 
Quanto aos EUA, procuram mostrar que não estão a perder influência global e têm capacidade de projectar o seu interesse nacional em qualquer parte do mundo. 
Apesar da perda de importância relativa do Médio Oriente face à Ásia-Pacífico, o grande jogo em curso é um factor de instabilidade e risco maior num mundo em transição para uma nova hierarquia de poderes.

Investigador

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