HISTÓRIA
Maria José Oliveira
24 Fevereiro 2018
A homenagem de Marcelo às vítimas do massacre de Batepá, em São Tomé e Príncipe, reavivou a memória de uma tragédia imersa na história colonial portuguesa. O que é que aconteceu em fevereiro de 1953?
No passado dia 21, o Presidente da República depositou uma coroa de flores junto ao memorial que evoca os que morreram nos primeiros dias de fevereiro de 1953, em várias localidades de São Tomé e Príncipe; e reconheceu o “peso intolerável e condenável” dos acontecimentos.
O massacre de Batepá, como ficou conhecido apesar de a violência ter acontecido também em outras localidades, não foi perpetrado somente pelos colonos brancos que receberam livre-trânsito para perseguir e matar os nativos.
Tratou-se de uma luta que envolveu mais beligerantes, neste caso, os trabalhadores contratados – moçambicanos, angolanos e cabo-verdianos –, que eram recrutados para as roças são-tomenses e que laboravam num autêntico regime de escravatura, desprezados tanto pelos colonos brancos e autoridades locais como pelos nativos. Também eles receberam armas da administração colonial e engrossaram, sem resistência, as fileiras dos carrascos, propagando a violência.
“A memória pública (…) apaga os actos de violência cometidos, por um lado, pelos trabalhadores contratados sobre os forros durante Batepá e, por outro, pela elite nativa são-tomense sobre os trabalhadores contratados e seus descendentes”, defende Inês Nascimento Rodrigues, estudiosa dos acontecimentos de 1953 em São Tomé.
Identificando esta tragédia como o gérmen da resistência política, os são-tomenses puderam, assim, datar a oposição ao colonizador num período muito anterior à proclamação da independência, a 12 de julho de 1975.
Por isso, o grande feriado nacional realiza-se a 3 de fevereiro, “Dia dos Mártires da Liberdade”.
“O massacre é (…) onde as vítimas se transformam em heróis”, declara a investigadora da Universidade de Coimbra.
O que aconteceu, afinal, em fevereiro de 1953 em São Tomé e Príncipe?
1 - Um Plano de Fomento contestado
Em fevereiro de 1948, o ministro das Colónias, Teófilo Duarte, recebeu um ofício confidencial sobre o trabalho do tenente coronel Carlos de Sousa Gorgulho como governador-geral de São Tomé e Príncipe.
O documento, datado do dia 26 e escrito por António de Almeida, um inspector superior da administração colonial, é um longo elogio a Gorgulho, que fora nomeado para o governo daquela província ultramarina apenas 3 anos antes, em 1945:
“Raras vezes se me tem deparado, reunidas em um só indivíduo, tão soberbas aptidões, virtudes e competência para o cargo. Inteligente, estudioso e de surpreendente dinamismo, desconhece a fadiga física ou intelectual, porque tão depressa fiscaliza no campo, obra de engenharia, que dirige, como à sua secretária prepara e escreve o relatório ou despacha e faz diplomas para o Boletim Oficial.”
Descrito como uma espécie de super-governador, que ora dominava o labor burocrático, ora andava no terreno, Gorgulho era, porém, vítima de uma “campanha de ódios”, que o acusava de recorrer frequentemente à escravatura para as obras que realizava no arquipélago.
António de Almeida repudiava as acusações, notando que Gorgulho tinha alterado radicalmente a vida dos são-tomenses:
“O que enobrece o seu nome foi a demolição funda do estatuto antigo de torpezas, do trabalho indígena; é a protecção dada aos serviçais das roças; é o levantamento moral e material dos nativos, de quem afastou o envenenamento pelo álcool, e para os quais ergueu moradias, fez Postos Sanitários, e fabrica, neste momento, bem preciso Infantário.”
Oriundo do meio castrense e com um currículo de lealdade ao Estado Novo, Carlos Gorgulho era, aos olhos do regime, o homem indicado para governar uma colónia pouco populosa, abundante em plantações de cacau e de café.
Na documentação governamental consultada referente a São Tomé, durante os primeiros anos do seu mandato não há registo de incidentes.
Apenas em 1949, ano de eleições presidenciais, foi reportado para a metrópole que da noite para o dia tinham aparecido em alguns edifícios da capital cartazes da candidatura de Norton de Matos.
Mas as investigações policiais acabaram arquivadas por falta de pistas.
Quatro anos depois, porém, Gorgulho viu-se obrigado a apresentar a sua demissão do governo de São Tomé ao ministro do Ultramar, Manuel Sarmento Rodrigues.
O que acontecera no início de 1953 poderia, caso fosse publicitado, causar um grande embaraço ao regime, numa altura em que os “ventos de mudança” se faziam sentir nos impérios britânico e francês em África, e Portugal insistia em manter intacta a sua política colonial.
Algures em fevereiro de 1953, Alda Espírito Santo, então uma jovem são-tomense, mais tarde escritora e activista política, escreveu uma carta para alguns amigos dando conta do que sucedera em São Tomé.
Descreveu os acontecimentos como uma “matança em série, uma loucura colectiva da parte da quase totalidade da população branca”, que cumpriu “ordens do governador e seus acólitos”.
Os “acólitos” pertenciam à elite da comunidade de colonos: Machado de Sousa, vice-presidente do conselho do governo; Coronel Alfredo Correia Nobre, lugar-tenente do governador; Firmino Abrantes, inspector de ensino e curador dos indígenas; Guilherme Abranches Pinto, chefe de gabinete do governador; Armando Lopes da Cruz, notário e antigo delegado do Procurador da República; Raúl Simões Dias, presidente da câmara e director do jornal “A Voz de São Tomé”; Trigo Delgado, engenheiro-chefe das obras públicas; Manuel da Costa Morão, delegado de saúde; o vigário-geral, padre Monteiro; e ainda os magistrados judiciais e do Ministério Público.
Na sua longa carta, Alda Espírito Santo contou que há muito que o seu povo era oprimido pelo governador Gorgulho, nomeadamente através de rusgas nocturnas e sequestros para trabalhar nas obras públicas sem ou com escassa remuneração, submetidos a castigos corporais.
A eclosão do “descontentamento” dos nativos deu-se após a publicação de uma entrevista ao director da Curadoria Geral dos Serviçais e Indígenas, Franco Rodrigues, no jornal “A Voz de São Tomé”, a 8 de janeiro de 1953.
A conversa com o responsável expunha os objectivos do Plano de Fomento para aquela província, nomeadamente a fixação de cabo-verdianos na ilha devido à carência de mão-de-obra.
Franco Rodrigues falava mesmo num “nivelamento” de “todas as populações para que no futuro os grupos populacionais diferentes entrem em contacto e se crie um produto único, não imposto, mas natural.”
As populações que ele distinguia eram os nativos-forros, caracterizados como “indivíduos que só relutantemente trabalham por contra de outrem, e isso porque são obrigados a satisfazer aquilo que lhes impõe a lei das necessidades”; os nativos-angolares (“indivíduos dedicados à vida da pesca trabalhando como barqueiros em muitas propriedades agrícolas”); os nativos-tongas (“indivíduos nascidos nas roças, habituados desde pequenos aos serviços das roças, trabalhando na grande maioria por conta de outrem em serviços do mato ou em oficinas das mais variadas artes); e, finalmente, os angolanos, moçambicanos e cabo-verdianos, que eram, nas suas palavras, “indivíduos prestando serviços nas propriedades agrícolas mediante um contrato de trabalho temporário.”
“É minha convicção”, disse, “que a adopção de todas estas medidas seria um passo em frente na senda do progresso e civilização. (…)
A assimilação levaria à distinção entre indígenas e não indígenas, seleccionando aqueles que pela sua elevação social, costumes e modo de viver, deveriam ser considerados assimilados, causa primordial para a evolução natural.”
Mais de um mês depois desta entrevista, e num relatório enviado para o Ministério do Ultramar, Carlos Gorgulho escreveu que as declarações de Franco Rodrigues teriam provocado alguns equívocos, nomeadamente que o Plano de Fomento incluía o regime de contratos de trabalho para os nativos e que o governador iria atribuir-lhes a “categoria” de indígenas.
A menção de Gorgulho a eventuais distorções interpretativas da entrevista enquadrava-se na tese argumentativa de que o governo teria sido obrigado a dominar a fúria descontrolada da população nativa, que entendera nas palavras de Franco Rodrigues a implantação do recrutamento compulsivo para o trabalho nas plantações de café e de cacau.
Esta ideia desagradava sobremaneira não só aos nativos, como aos donos das plantações, que queriam manter o regime de escravatura de angolanos, cabo-verdianos e moçambicanos.
Para os ilhéus, trabalhar nas roças significava um “nivelamento” relativamente aos restantes trabalhadores africanos, isto é, uma “desqualificação social” que os nativos repudiavam, sustenta o investigador Augusto Nascimento, do Centro de História da Universidade de Lisboa. “A existência de trabalho com uma forte carga compulsiva tendia a influenciar as relações laborais fora das roças num sentido desfavorável aos trabalhadores, processo ainda mais vincado pela prevalência do racismo que enformava o quotidiano do arquipélago.”
2 - Chicotes, choques eléctricos, correntes e trabalhos forçados
Poucas semanas após a entrevista de Franco Rodrigues, rusgas nocturnas ordenadas pelo governador-geral e feitas na povoação de Caixão Grande, perto da vila de Trindade, levaram à morte de um soldado do Corpo de Polícia Indígena, de apelido Amaral.
A morte aconteceu na noite de 1 para 2 de fevereiro. Foi o rastilho para o massacre.
A 2, Zé Mulato, alcunha de José Joaquim, um enfermeiro que acumulava as funções de verdugo às ordens de Gorgulho, chegou a Trindade acompanhado por um grupo de homens.
Responderam à morte do soldado matando um nativo, na rua, e a população fugiu para o mato, em busca de refúgio.
Os que não conseguiam fugir, eram presos; os homens de Zé Mulato, armados com espingardas e pistolas, disparavam indiscriminadamente, incendiavam casas e lojas, e não tardou para que se lhes juntassem os colonos brancos, armados, fazendo-se transportar em jipes, sempre em grupo.
As perseguições e as prisões aumentaram substancialmente e a violência propagou-se às povoações de Batepá, Madalena, Santo Amaro e Uba Flor.
Na Cadeia Civil da capital, escreveu Alda Espírito Santo, foram presos numa só cela 47 homens. Passaram a noite a gritar, a pedir socorro e água.
Ninguém lhes valeu.
Na manhã seguinte, quando os guardas abriram a porta da cela, 30 homens estavam mortos.
Foram “enterrados numa vala comum”, “sem registo dos óbitos”.
Este acontecimento viria, aliás, a ser admitido pelo próprio governador, que, no primeiro relatório que enviou para Sarmento Rodrigues, lamentou a morte “por asfixia de sete presos que se encontravam encerrados num prisão pequena superlotada”, garantindo que o sucedido iria ser comunicado ao tribunal da comarca.
Num aditamento a este relatório, remetido ainda em Fevereiro, Gorgulho “corrigiu” as anteriores informações:
“Devo referir que pelo depoimento de alguns dos presos que se encontravam na prisão citada, e que nada sofreram, se verifica que se travou discussão entre os detidos, sendo uns de opinião que deveriam confessar tudo e outros de opinião contrária. Por esse motivo se travou luta do que resultou a morte por estrangulação dos sete referidos”.
A partir de 3 de fevereiro, e pelo menos até ao dia 8, os arredores e a vila de Trindade foram quase totalmente destruídos.
Enquanto os colonos brancos e os lacaios de Gorgulho “caçavam” nativos, o governador-geral ordenou a prisão dos funcionários públicos negros.
Aqueles que não eram presos, eram demitidos.
E os poucos que permaneceram em funções, foram coagidos, sob ameaça de prisão ou deportação, a assinar uma declaração que repudiava a revolta e que obrigava os signatários a denunciarem qualquer crítica, “actos ou predisposições a actos de rebelião ou agressivos contra os poderes constituídos”, contou o historiador são-tomense Carlos Espírito Santo no seu livro “A Guerra da Trindade”.
Ao longo daqueles dias, centenas de pessoas foram encarceradas na Cadeia Civil, na Fortaleza de São Sebastião e em locais de detenção improvisados, como a Capitania dos Portos e um edifício em construção que estava destinado a ser um presídio exclusivamente para colonos brancos.
Muitos foram deportados para a ilha do Príncipe; outros, levados para a praia de Fernão Dias, uma prisão a céu aberto.
Aqui, os homens eram obrigados a transportar grandes tinas com água do mar para as obras de uma estrada nas imediações, suportando ainda o chicote e o peso de correntes presas ao pescoço, cintura e tornozelo.
Aqueles que sucumbiam eram lançados ao mar.
Nunca foi possível apurar, com rigor, o número de vítimas mortais do massacre, sabendo-se apenas que rondaram as centenas.
José Rodrigues Pedronho, secretário de circunscrição na Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, com 44 anos de serviço e 62 de idade, foi um dos funcionários públicos presos nesses primeiros dias de Fevereiro.
Levaram-no primeiramente para a Fortaleza de São Sebastião.
E dali foi transportado, no dia 14, juntamente com outros presos, para a praia de Fernão Dias.
Num depoimento que se encontra no Arquivo Mário Pinto de Andrade, na Fundação Mário Soares, pode ler-se o que lhe aconteceu:
“Chegado à praia Fernão Dias fui logo mandado descalçar, sucedendo o mesmo a todos os meus companheiros e de infortúnio. Assim descalços, amarraram-me na cintura com um cabo com o comprimento pouco mais ou menos de um metro e meio a dois metros, numa das extremidades na qual foi também amarrado um dos meus companheiros Quintero Aguiar, ficando assim os dois atrelados um ao outro. De seguida fomos os dois conduzidos para o local onde vários tiravam terra lamacenta para o aterro de uma parte do pântano. Uma vez ali chegados fomos obrigados a transportar pedra com uma tina a cada um à cabeça. Dirigiram aqueles serviços alguns capatazes, todos criminosos e condenados por crimes.
Logo que nos viram com a tina à cabeça começaram a vergastar-nos as costas e várias partes do corpo, com os chicotes feitos de tiras de borracha de pneu, sucedendo muitas vezes que quando o Quintero era vergastado, corria puxando-me na corrida e quando sucedia o contrário era o Quintero por mim puxado, tudo numa correria doida de vaivém com a tina à cabeça, procurando cada um livrar-se do chicote.”
Nas prisões, todos eram sujeitos a torturas.
Carlos Espírito Santo cita na sua obra depoimentos de vários reclusos que disseram ter sido submetidos a choques eléctricos, como Maria Miguel, que, em junho de 1953, contou que, durante o interrogatório, lhe ataram as pernas com fios eléctricos, ligados a uma máquina com manivela que era manuseada pelo “cabo Fonseca”.
“O cabo Fonseca é que punha a máquina do suplício a funcionar”, recordou Maria, ignorando, porém, quem lhe fazia perguntas.
Espírito Santo revela também no seu livro que muitas mulheres e meninas foram abusadas sexualmente pelos guardas e cabos das prisões.
Em todas as prisões a alimentação era, invariavelmente, peixe salgado cru, olhos e tripas de vaca e fuba (farinha de milho ou de arroz) com bicho.
E só podiam beber a água que era usada para lavar as tinas de alimentos.
Não tardou para que surgissem doenças várias; muitos perderam a visão e a audição; outros ficaram mutilados e deformados; outros ainda com muitas sequelas psicológicas.
No fim daquele fatídico fevereiro o número de órfãos são-tomenses aumentou consideravelmente.
A 10 de fevereiro prosseguiam ainda as detenções em massa.
Nesse dia, a mãe de Alda Espírito Santo foi presa.
3 - A “caça” de colonos brancos aos nativos
Em maio de 1953, Oliveira Salazar recebeu uma carta de João Baptista José Fernandes, um são-tomense com negócio em Cascais, que lhe pedia o favor de autorizar a vinda do irmão, Olímpio José Fernandes, para a metrópole.
Em anexo enviou a cópia de uma missiva de Olímpio, preso a 4 de fevereiro, torturado e sujeito a trabalhos forçados.
“Meu caro João,Após 99 dias de prisão, passando transes horríveis e privações de toda a espécie, fui posto em liberdade em 10 do corrente, com a saúde altamente abalada, por via de maus tratos corporais de que fui vítima.
Fui preso aqui na roça no dia 4 de Fevereiro, precisamente no dia em que, dizem eles, arrebentou a revolução só concebível na cabeça sem miolo.
Coisas arquitectadas sem pés nem cabeça, pois não se compreende que pretos sem armas, sem coesão, puxando geralmente cada um para o seu lado, façam revolução somente com machins e ganchos de cacau, para a independência de S. Tomé.
O ódio da vingança chegou a quem deveria ter olhos de lince para governar um povo.
Um descabido protesto para eliminar elementos de classe alta e médias, aqueles que vêem algumas, ficando a massa anónima da classe baixa à mercê do quer que seja. (…)
Apanhei muita pancada, sobretudo na cabeça; fui acorrentado duas vezes, sendo uma das vezes com duas voltas ao pescoço e enviado para trabalho forçado. Coisas dos diabos e que soando lá fora, deixará uma péssima impressão a esforço de portugueses de lei. (…)”.
Não há muitos documentos no Arquivo Oliveira Salazar sobre o massacre de Batepá, mas é certo que o presidente do Conselho conhecia em pormenor tudo que acontecera em São Tomé e Príncipe muito tempo antes de ler a carta de Olímpio José Fernandes.
A 5 de fevereiro, quando ainda prosseguia a “guerra da Trindade”, Sarmento Rodrigues recebeu um telegrama confidencial de Gorgulho que tinha como “Assunto” a palavra “Incidentes”.
O governador informava o ministro do Ultramar que a noite anterior tinha sido “calma”, apenas com alguns tiroteios isolados na ilha.
Falava em “grupos armados” de nativos e garantia estar a proceder a “operações de limpeza”, que poderiam ser morosas, pois os “rebeldes” estavam escondidos numa “floresta densa”.
Informava ainda que pedira mais munições ao governador de Angola, pois previa que as “operações” se alastrassem para o Sul da ilha; e abordava pela primeira vez o envolvimento dos colonos brancos: “Não preciso reforços pois população branca veio massa meu apelo que me satisfaz bastante.”
Concluía o telegrama com a convicção de que já tinha “dominado completamente rebelião cujo fim segundo dizem África para africanos ódio morte brancos.”
Apesar da abissal diferença de munições – os nativos combatiam com machins e azagaias; os brancos usavam armas de fogo –, Gorgulho teve de admitir à tutela, num novo telegrama, a 6 de fevereiro, que, afinal, ainda não dominara “completamente” a revolta. “Continuo nas operações de limpeza fizeram-se cerca 30 presos entre eles assassino oficial Amaral” — o alferes miliciano de artilharia, membro do Corpo de Polícia Indígena, que fora morto em Caixão Grande na noite de 1 para 2 de fevereiro.
O chefe de Estado e ministros nos Paços do Concelho em 1951. À esquerda do general Craveiro Lopes, o ministro das Colónias, comandante Sarmento Rodrigues |
No mesmo telegrama, o governador dava conta das baixas: três mortos e quatro feridos entre as fileiras do governo; 20 mortos entre os “rebeldes”, que, escreveu, usavam “armas gentílicas”.
Deixando antever as ideias que iria defender no seu detalhado relatório, falava já num “movimento muito extenso” com “ramificações”, tendo entre os seus elementos funcionários públicos nativos que não mereciam “confiança alguma” e que eram apologistas do “separatismo”.
Não demorou muito para que também desconfiasse dos soldados forros que integravam o Corpo de Polícia Indígena.
Por isso, dispensou-os e substituiu-os pelos trabalhadores moçambicanos, angolanos e cabo-verdianos que estavam nas roças.
Recrutados como militares e armados pelo governador, tornaram-se num dos grupos executores do massacre.
A 7 de fevereiro, São Tomé estava em estado de sítio: os estabelecimentos da cidade encerraram portas; as instituições paralisaram.
Gorgulho dispensou quaisquer reforços da metrópole, argumentando com o sucesso alcançado pela mobilização dos colonos brancos.
Actualizou a estatística das baixas — “mortos nossos 5 feridos 4 (…) revoltosos 42 mortos” — e apontou o dedo aos “cabecilhas”.
A saber: Salustino Graça, um engenheiro agrónomo são-tomense, dono de plantações, e os “proprietários brancos com alma de preto” Virgílio Lima e Carlos Soares.
A ordem na ilha estava “completamente assegurada”, garantia ao ministro, o número de prisioneiros era elevado e a causa principal da “rebelião” estava descoberta: o “fanatismo nativo” fora “explorado” por “comunistas”, que, a pretexto das alterações laborais, provocaram a “revolta”.
A teoria de que em São Tomé e Príncipe existia uma rede clandestina de comunistas foi reiteradamente defendida por Gorgulho, mas não teve muito eco junto da tutela.
4 - “O primeiro movimento comunista na nossa África”, segundo Gorgulho
Ainda em fevereiro, em data não indicada, Gorgulho enviou para Sarmento Rodrigues um extenso relatório confidencial com 28 páginas dactilografadas, exemplares de “A Voz de São Tomé”, um mapa com a identificação das vilas e roças, o testemunho da Missão Católica, fotografias (que não constam da pasta do Arquivo Histórico-Militar), autos de declarações de presos, documentos apreendidos e reproduções de editais.
Tudo isto servia para sustentar a sua leitura dos acontecimentos.
Que, “sem sombra de dúvida”, fora impulsionado por um “movimento puramente comunista, de grande envergadura, pois nele estavam comprometidos a maioria dos nativos de S. Tomé vulgarmente designados por ‘fôrros’.”
Os comunistas são-tomenses estavam, portanto, associados a uma rede internacional que envolvia o Congo francês, a Nigéria, a França e os Estados Unidos da América.
Tratava-se, defendeu, do “primeiro movimento comunista na nossa África”.
E alertava já a metrópole de que “outros lhe sucederão”.
Previsivelmente, a Igreja católica corroborava esta teoria.
A Missão Católica sublinhava que os padres andavam, desde há dois meses, a ser atacados por “certos elementos”.
Sobretudo depois de o padre da vila da Trindade ter defendido, durante o sermão, que era necessário implantar o regime dos contratos de trabalho para os nativos; e de o pároco de Santana e o vigário-geral terem denunciado um nativo que, em confissão, afirmara ter morto um homem.
Apesar dos “avisos” da Igreja, Gorgulho foi “apanhado completamente desprevenido”, explicando que a rede clandestina tivera tempo para “minar quase toda a população” e ameaçar “de morte” os que recusavam colaborar.
Depois deste preâmbulo, o governador expôs então a sua versão dos acontecimentos de fevereiro.
A 31 de janeiro, 1 e 2 de fevereiro surgiram em alguns dos lugares mais frequentados da cidade de São Tomé papéis manuscritos nos quais se podia ler que, caso os nativos fossem contratados para as roças, o governador seria morto.
Em causa estavam as propostas do Plano de Fomento, especialmente a fixação de trabalhadores cabo-verdianos, e a ideia de que o governo local iria impor o regime de contratos de trabalho para os nativos.
Para “serenar os ânimos”, Gorgulho publicou uma nota oficiosa, afixada nos edifícios públicos da capital e de algumas vilas, negando a intenção de avançar com os contratos. Na noite de 2 para 3 de fevereiro, esses papéis foram rasgados, sobretudo na vila da Trindade.
Foi então que começaram os “actos de indisciplina” e a “atmosfera de agitação revolucionária”.
Gorgulho decidiu, então, visitar Trindade, ordenando a afixação de mais notas oficiosas.
O seu propósito era apanhar em flagrante aqueles que as retiravam.
Para tal, reuniu polícias à paisana e recrutou alguns angolanos e moçambicanos que estavam presos em São Tomé.
O confronto deu-se às 20h00 do dia 3.
De um lado, estavam os “amotinados” com “armas gentílicas”; do outro, a polícia e os homens do governador, com armas de fogo.
Durante o combate, escreveu, um grupo de nativos interceptou “em atitude agressiva” os automóveis que vinham da capital.
Mas depois do tiroteio os “revoltosos” recuaram e “começaram a soprar em búzios com o fim de maior convocação”.
Esta imagem e o som que se fez ouvir não deixaram de impressionar o governador, que, numa espécie de aparte, escreveu que se tratou de uma “demonstração sonora que tinha muito de impressionante”.
Os presos feitos durante o “motim” em Trindade informaram Gorgulho de que a revolta não era “ocasional”, mas antes uma acção organizada por um movimento que preparava algo “mais sério e vasto”.
Perante esta informação, determinou a prisão de indivíduos “já há muito conhecidos como dedicados a actividades revolucionárias”.
A todos deportou para a ilha do Príncipe na manhã do dia 5 de fevereiro.
Entre estes prisioneiros estavam “mais de duas centenas de nativos”, que, “fortemente armados de armas gentílicas e pistolas”, tinham atacado o posto policial de Trindade na madrugada do dia 4.
As praças ali instaladas recorreram a “granadas de mão”, escreveu, sublinhando que “o posto resistiu bem”.
Gorgulho organizou então uma coluna de homens e dirigiu-se para a vila.
Quando ali chegou viu a guarnição do posto metralhar sobre os “revoltosos que se acoitavam atrás de árvores grossas, em cima delas”.
O governador dividiu a coluna em três fracções e ordenou-lhes que batessem o mato, de forma cercar os nativos.
Foi nessa altura que, durante um tiroteio, foi morto o alferes Amaral — “massacrado barbaramente numa senha feroz”, realçou.
O mesmo aconteceu a um soldado angolano, Sauima.
Nesse dia houve “fogo nutrido” durante quatro horas.
Os “atacantes” recuaram, enterraram os seus mortos “por diversos locais”, e refugiaram-se nas roças de Salustino da Graça, Virgílio Lima e Carlos Soares, “os dois últimos infelizmente de raça branca”.
Contou Gorgulho que foi nas propriedades destes roceiros que foram descobertas armas, “um número exagerado de machins e um abastecimento de víveres”.
Entretanto, foi informado de novas concentrações de “rebeldes” em Caixão Grande, Madalena e Santo Amaro e de assaltos a carros e camionetas nas estradas.
Foi então que “a população europeia apareceu em massa” no Corpo de Polícia, oferecendo os “seus préstimos”.
Perante a mobilização dos colonos, o governador disse não ter outra alternativa se não “aceitar o oferecimento” e logo ordenou uma “organização metódica de pelotões”.
Sem detalhar o que fizeram estes pelotões de colonos brancos, Gorgulho resumiu que os serviços “foram notáveis e podem considerar-se decisivos”.
Juntamente com os contratados angolanos e moçambicanos que tinha ido buscar às roças (“cerca de 200”, escreveu; “cerca de 250”, lê-se uns parágrafos mais à frente) e com as milícias de colonos, liderou novos ataques a Trindade e a Milagrosa no dia 5, “tendo feito alguns mortos e feridos”.
A ofensiva prolongou-se por todo o dia.
“O comportamento de todos os mobilizados brancos foi excepcional e actuaram com uma dedicação que não desmente o valor da nossa raça.
Os soldados de Angola e Moçambique actuaram admiravelmente verificando-se até alguns actos de heroísmo.”
No dia seguinte, prosseguiram as “operações de limpeza” e, “para evitar mais mortos e para levantar o moral das nossas forças”, Gorgulho determinou que se procedesse a uma “operação de limpeza mais completa”, solicitando a colaboração das roças.
Para tal, afixou no dia 5 um novo edital, no qual proibia a venda de facas e machins aos nativos, sob pena de prisão; ordenava que as roças deveriam prender os nativos que ali estivessem escondidos; pedia aos proprietários para criarem grupos de serviçais, que, armados, protegessem as plantações e as casas; e anunciava que todos os angolanos e moçambicanos deveriam estar preparados para serem chamados a combater os nativos.
O plano de criar uma força composta por colonos brancos, proprietários, contratados de outras colónias africanas e reclusos resultou na apreensão de “bastantes machins, machados e azagaias”, na destruição das casas dos forros e na captura de mais de mil nativos.
“Como o consumo de munições foi grande”, pediu novo abastecimento a Angola.
Que lhe enviou 100 mil cartuchos de espingarda, mil granadas de mão defensivas, 500 granadas de mão ofensivas, 10 mil cartuchos para metralhadora, 20 metralhadoras, seis pistolas very light com cargas, dois projectores de mão, 20 quilómetros de arame farpado e dois mil sacos de terra.
A 6 de fevereiro, o Comando Militar de São Tomé anunciava, em edital, lançado por aviões, que aos nativos que depusessem as armas estaria garantida “a maior benevolência esperando que todos saibam corresponder a este gesto de clemência”.
A 7, novo edital, publicitando o “lamento” do governador pela perda de vidas “dos dois lados da luta” e assegurando o apuramento de responsabilidades.
Finalmente, a 8, uma nota oficiosa assinada pelo chefe de gabinete do governador, Guilherme Abranches Pinto, distribuída em português e em forro, acusava a população nativa de ter apoiado os “inimigos da Pátria” e garantia que o governo não iria esquecer aquela “ingratidão” “abominável”.
Nota oficiosa assinada pelo chefe de gabinete do governador de São Tomé e Príncipe @Arquivo Histórico Militar (AHM)/ DIV/11/585/259
Depois de expor a sua versão do que acontecera em São Tomé, Gorgulho identificou o responsável pela revolta: Salustino Graça, o “governador” de um conjunto de “células” espalhadas por toda a ilha.
“Os conhecidos slogans de ‘ódio aos brancos’ e a ‘África para os Africanos’ dinamizavam espiritualmente todo este agregado”, escreveu.
E qual era então o plano dos “rebeldes”?
Segundo Gorgulho, o mesmo estava marcado para acontecer às 21h00 do dia 6 de fevereiro, hora em que ele e grande parte dos colonos ricos iriam estar no Teatro Império a assistir a um espectáculo de revista da Companhia Giuseppe Bastos (companhia que representava sobretudo comédias).
O plano era, portanto, assaltar o teatro, degolar o governador e matar todos os que resistissem.
“Formava-se em seguida na Província um governo de nativos presidido por Salustino Graça”, aportariam à ilha armas do Congo Francês, e o novo governador teria ainda apoio da França e dos EUA.
Para evitar a concretização deste projecto e estancar os motins, Gorgulho viu-se obrigado a tomar uma série de medidas compiladas no relatório num capítulo titulado “Depuração”. Demitiu quase todos os funcionários públicos nativos; nomeou homens da sua confiança para liderar inquéritos; escolheu Afonso Machado de Sousa, vice-presidente do Conselho do governo, para juiz vogal do Tribunal Territorial que iria julgar os presos; e deportou, sem julgamento, muitos prisioneiros para o Príncipe.
O objectivo era fazer uma “limpeza radical” que mostraria que o “império” não se sujeita “às exigências dos nativos”.
Após os julgamentos, a “limpeza radical” passaria por deportar os réus para locais que variavam conforme a “raça”: “cabecilhas de raça branca: na Ilha do Sal”; “cabecilhas de raça negra para Timor”; “indesejáveis de raça branca para a Metrópole”; “indesejáveis negros: Baía dos Tigres”.
Os forros vadios seriam “compelidos” ao trabalho; e os “desafectos às autoridades” deportados para a ilha do Príncipe.
Nas suas considerações finais, Gorgulho lamentava que São Tomé e Príncipe tivesse sido a província onde se quebrou “o sossego que reina em todo o território Ultramarino”.
E avançava com uma explicação: “Incompreensão, ingratidão… os povos são assim e dificilmente aceitam os bons conselhos, apressando-se antes a seguir os maus.”
No fim do relatório, escreveu que colocava o seu lugar à disposição, escrevendo que depunha perante o ministro do Ultramar o mandato que lhe tinha sido confiado.
A 21 de fevereiro, Sarmento Rodrigues recebeu de Gorgulho um aditamento de sete folhas e um mapa da ilha com a distribuição de células comunistas – esquema feito a partir da “confissão” dos presos.
A tese de um golpe comunista na ilha prosseguia, desta vez com um novo participante: Moscovo.
E prosseguia igualmente o enredo dramático: Gorgulho identificara uma vala comum onde seriam “enterrados os europeus”; e descobrira que os vendedores ambulantes a bordo dos navios de carreira eram, afinal, contrabandistas que introduziam armas e propaganda na ilha.
Nesta altura, já a conspiração exposta no primeiro relatório envolvia todos os nativos: “As investigações têm prosseguido e cada vez mais deixam a convicção de que todos os nativos desde o mais humilde até ao funcionário mais categorizado estavam pelo menos conhecedores do que se passava, de nada dando nota, o que revela uma união extraordinária entre todos.”
Posto isto, todo o funcionalismo público de São Tomé deveria ser ocupado por europeus, que, ressalvou, teriam de ter vencimentos mais altos do que aqueles que eram atribuídos anteriormente aos nativos.
5 - Perante a “situação melindrosa”, Salazar indica a “boa solução”
Em finais de fevereiro, Manuel João da Palma Carlos, 38 anos, advogado com escritório na rua dos Sapateiros, já com uma biografia de resistência antifascista, estava a atravessar o Rossio quando um homem o abordou, pedindo-lhe para partir o mais depressa possível para São Tomé e Príncipe.
Que existiam vidas para salvar e que lhe podiam dar dois contos para pagar o bilhete de avião.
O desconhecido era Américo Espírito Santo, pertencente a uma família da elite de São Tomé, contou Palma Carlos numa entrevista ao Público, em 1999.
O advogado chegou a São Tomé a 25 de março de 1953, pouco mais de um mês após o massacre, e num momento em que estava em cena “a grande ‘farsa’ do apuramento das responsáveis pelo movimento ‘insidioso’, ‘separatista’ e ‘comunista’”.
As investigações eram lideradas por António Luiz Coelho e os presos obrigados a “confessar” que queriam matar o governador, degolar os colonos europeus à saída do Teatro Império e distribuir as mulheres brancas pelos nativos.
Mais: que tinham armas e munições e que aguardavam um navio que apoiaria a tomada da ilha.
Na capital nenhuma pensão ou residencial aceitaram acolher Palma Carlos.
Valeu-lhe um “Dr. Simas”, médico, que lhe cedeu um quarto que tinha na cidade e que usava quando não andava em visitas pelas roças da ilha.
A presença do advogado na colónia incomodava as autoridades locais, mas ele nunca se deixou intimidar e conseguiu que os nativos presos tivessem direito a uma defesa justa.
O que acontecera “envergonhara uma nação inteira”, afirmou.
Começou por exigir a visita das famílias aos presos e, de seguida, contactou-os directamente, deslocando-se a todas as prisões.
Gorgulho, que esperava ainda ser chamado a Lisboa, decidiu não confrontar Palma Carlos. Ordenou a libertação de um grande número de presos da praia de Fernão Dias e, a 7 de abril, uma nova vaga de presos, todos eles implicados no processo que tinha sido instaurado pelo governo, foram ilibados, através de uma medida administrativa, considerados indesejáveis e deportados para o Príncipe.
Foram estas as últimas medidas de Carlos Gorgulho enquanto governador-geral de São Tomé.
A 19 de abril, Gorgulho, o comandante da secção de presos do Corpo de Polícia Indígena, Fernando dos Santos Ferreira, o presidente da câmara, Raúl Simões Dias, e o chefe local da PIDE, Falcão, foram chamados à metrópole.
Em finais de maio, apenas Falcão regressou a São Tomé e levava consigo uma ordem: libertar todos os presos capturados durante o massacre de Batepá, com a excepção dos que tinham estado envolvidos na morte do alferes Amaral.
Poucos dias depois, a 9 de junho, aqueles que tinham sido deportados para a ilha do Príncipe regressaram às suas casas.
De Lisboa chegaram elementos do Tribunal Militar para julgar a morte do alferes – o julgamento foi breve e terminou com a pena de 28 anos de prisão para o réu Cangolo e com penas menores, de cinco anos de prisão, para os restantes réus, todos defendidos por advogados oficiosos.
Em simultâneo, chegaram ao tribunal queixas contra os algozes do governador: Zé Mulato foi preso, num processo movido pelo Ministério Público; e Rufino, administrador da roça Santa Margarida, acabou condenado por ter incendiado uma loja de um nativo.
O Ministério Público interpôs ainda acções contra outros carrascos, como Damião Baptista, vulgo Malé Pepe, e o capataz Alves Françones Matias.
Estes processos permitiram ouvir as vítimas destes homens, como Lauriano Bernardo de Ceita da Graça, um ajudante de carcereiro da Cadeia Civil de São Tomé, que, preso a 26 de fevereiro de 1953, foi levado para Fernão Dias e ali acorrentado, torturado, espancado e deportado para o Príncipe.
Ao longo do julgamento, Zé Mulato respondeu sempre que se limitava a cumprir ordens.
De quem?
Do governador.
Carlos Gorgulho estava então em Lisboa.
(Em sua substituição, como governador representante, estava o brigadeiro Fernando Augusto Rodrigues.)
Esperava poder regressar a São Tomé, mas a última esperança residia agora numa decisão de Oliveira Salazar.
Já estivera reunido com Sarmento Rodrigues e este demonstrara-lhe que os acontecimentos de fevereiro eram um embaraço para o regime e que recebera informações divergentes do seu relatório, provavelmente oriundas da PIDE.
A conversa com o ministro consistira num “cerrado interrogatório sobre pretensas violências cometidas” pelos seus homens.
Quando percebeu que a ideia de uma conspiração comunista internacional não tinha convencido o ministro, perdendo a confiança da tutela, restava-lhe somente recorrer a Salazar.
A 12 de Maio, escreveu-lhe uma carta:
“(…) Senhor Presidente. Não apareci agora de repente na vida pública. Venho acompanhando V. Exª desde 1926 servindo sempre com honestidade e isenção, nada possuindo a não ser o meu brio de militar e o desejo sempre firme e inabalável de bem servir o Estado Novo e o meu País, como provei sobejamente em 8 anos de governo em São Tomé e nos momentos difíceis que temos atravessado.
Parece-me por isso não merecer o tratamento a que fui submetido depois de ter servido já 17 anos no Ultramar supondo tê-lo feito sempre com agrado e mesmo com aplauso dos superiores com quem tive a honra de servir.
Em V. Exª deposito todas as minhas esperanças, certo de que justiça será feita à minha acção em prol da ordem e do prestigio da autoridade. (…)”
Dois dias depois, a 14, Gorgulho recebeu uma carta de Salazar.
Que começava por explicar que a atitude de Sarmento Rodrigues não pretendia “julgar” o governador, mas“quando muito, se julgava sobre o aspecto político da situação”.
Ou seja, estava em causa avaliar se Gorgulho deveria ou não retomar as suas funções no governo de São Tomé.
“Esta é a questão essencial”, observava Salazar.
E a questão já tinha sido debatida em Conselho de Ministros, onde era “unânime” a proposta de louvar a “valentia” do governador na dominação da “sublevação e motins de há três meses”.
Depois deste intróito, o aviso: “O Conselho considera mais conveniente que o Tenente Coronel Gorgulho se afaste por sua livre determinação”.
Não decidiam sem alguma “tristeza”, mas concordavam ser esta “a boa solução”.
Portanto, concluiu Salazar, “ao Tenente Coronel Gorgulho pertence agora ajustar os pormenores e facilitar a sua execução.”
Perante a clareza das palavras do presidente do Conselho, Gorgulho não poderia insistir.
E não houve mais qualquer conversa epistolar.
A última frase de Salazar exigia rapidez na demissão, pelo que no dia seguinte, a 15, Gorgulho pediu a exoneração do cargo de governador-geral de São Tomé e Príncipe. Sarmento Rodrigues informou Salazar no dia 16, apontando que tudo estava a correr como planeado.
“Nas presentes circunstâncias” e para debelar uma “situação melindrosa”, era necessário celeridade na concessão do pedido.
Contudo, a demissão só foi publicada no Diário do Governo a 11 de junho, embora tivesse tido efeitos ainda em maio.
Em setembro de 1953, Sarmento Rodrigues nomeou um novo governador para São Tomé: Francisco António Pires Barata, que se manteve naquelas funções até agosto de 1954.
Por fim, faltava louvar e condecorar Gorgulho, tal como Salazar escrevera na carta que lhe endereçara.
Num parecer confidencial enviado para São Bento ainda no dia 14 de maio, o ministro do Exército, Adolfo Abranches Pinto, irmão do chefe de gabinete de Gorgulho em São Tomé, considerava “justo louvar e galardoar” a actuação do governador, informando que tinha já redigido um projecto de louvor (que anexou à carta, mas que não consta da pasta consultada), com o qual estavam de acordo os ministros da Defesa, da Marinha, das Comunicações “e até o do Ultramar”.
Quanto à condecoração, Abranches Pinto propôs um dos graus de Torre e Espada.
Contudo, Salazar decidiu recuar.
Impunha-se o silêncio imediato sobre o que acontecera em São Tomé.
A 18 de maio, Abranches Pinto escreveu que compreendia “perfeitamente a oportunidade das alterações no sentido de atenuar a gravidade dos acontecimentos segundo a versão oficial”.
No Arquivo da Presidência da República existe um processo referente a Gorgulho com as datas de janeiro e fevereiro de 1953, abrangendo os dias da chacina em São Tomé.
Há pouca documentação: um ofício do director-geral da Administração Política e Civil, tutelada pelo Ministério do Ultramar, remetido ao chanceler das Ordens, com a proposta para que fosse atribuída ao governador a comenda da Ordem do Império Colonial; e um outro ofício, datado de 21 de fevereiro, remetido pelo secretário das Ordens para o Ministério do Ultramar com o pedido para que fosse indicada uma data no primeiro ofício.
E nada mais.
O processo quedou-se por aqui.
Discretamente, Gorgulho acabaria por ser louvado ainda em 1953, no Diário do governo ( nº 136, 2ª série, de 11 de junho de 1953), pelos “relevantes serviços”, “tenacidade e esforço incansável” na função de governador-geral de São Tomé e Príncipe.
Segundo a Ordem do Exército de 5 de agosto do mesmo ano, ficou como supranumerário do Ministério do Exército.
E um ano depois do massacre, Gorgulho recebeu o louvor prometido por Salazar.
O silêncio era quebrado, mas consolidava-se a versão oficial dos acontecimentos.
Na Ordem do Exército de 28 de fevereiro (nº 1, 2ª série), Sarmento Rodrigues fez publicar um pequeno texto que elogiava a “bravura” e as “notáveis qualidade de iniciativa na organização de forças para combater os sediciosos”, numa situação de “defecção de parte do corpo da polícia local”.
“Foi demitido com louvor”, escarneceu Palma Carlos.
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