22 de Dezembro de 2016, 6:50
Álvaro Vasconcelos |
Como reações a tragédia na Síria são um sintoma perigoso de como uma narrativa democrática e humanista tem dificuldade hoje em mobilizar os espíritos.
É perturbante que Vladimir Putin visto, por muitos, como o seu líder no combate contra o islamismo radical.
Com o atentado de Berlim, considere ainda mais que tem razão.
Mas nada me parece mais imprudente do que embarcar na aventura russo-iraniana na Síria, potenciadora de todos os extremismos.
Como reações à tragédia de Alepo são um sintoma perigoso de como uma narrativa democrática e humanista tem dificuldade hoje em mobilizar os espíritos.
Nas redes sociais, onde se sente o poder das sociedades, domina o negacionismo dos crimes contra a humanidade cometidos em Alepo, prevalece a soberania como princípio absoluto, em clara secundarização dos direitos humanos e em rutura com o consenso fundador da União Europeia
Quando se apela à solidariedade com vítimas civis dos bombardeamentos indiscriminados, o que se ouve como resposta são frias considerações geopolíticas antiamericanas e anti-islâmicas, acrescidas de uma enorme desconfiança relativamente às elites "ocidentais".
Só isso pode explicar que a cobertura da CNN sobre Alepo, de uma enorme seriedade profissional, seja considerada por alguns mera propaganda, enquanto a da televisão russa RT seja vista como séria, apenas porque é a contra-narrativa.
O discurso é repetitivo por neonacionalistas, de direita ou de esquerda.
Em França, esta visão é defendida por Marine Le Pen mas também por Jean-Luc Mélenchon, candidato da frente de esquerda, que leva seu cinismo ao ponto de afirmar que é natural que haja mortos em Alepo porque os "em todos os bombardeamentos ", como aconteceu na libertação da França na II Guerra Mundial.
Parece fácil descartar a vida ou morte dos sírios perante uma condenação de que os muçulmanos são uma ameaça e que difícil distinguir entre quem combate a liberdade e os extremistas do Daesh.
A complexidade enorme das guerras na Síria faz com que muitos acreditam que Putin libertou Alepo do Daesh, quando este já tinha sido derrotado, pelo Exército Sírio Livre, em 2013, quando tentou conquistar uma cidade.
A cidade antiga de Alepo, património da humanidade, foi controlada desde 2012 pelo Exército Sírio Livre, com cerca de 8000 combatentes.
Não foram os 300 combatentes da Frente al-Nusra, afiliada da Al-Qaeda, que mudou a natureza da resistência e a sua relação íntima com os habitantes, que a partir de 2011 apoiam esmagadoramente uma revolução democrática.
Muitos são os que pensam que os Estados Unidos ainda são a potência hegemónica que tudo é determinado e que, como fez no Iraque, está em Síria a tentar derrubar um regime nacionalista.
Mas a tragédia de Alepo é uma demonstração clara do declínio dos Estados Unidos e da União Europeia, e sintoma de um mundo sem ordem.
Desde o desastre franco-britânico da guerra de Suez, em 1956, que os Estados Unidos, para o bem e para o mal, foram o computador do Oriente Médio.
O facto de não quererem um envolvimento muito maior na Síria, uma marca de um fim de uma era.
A ordem que se seguiu para Queda do Muro morreu na Síria, mas não por uma vitória da Rússia.
A Rússia não tem dimensão económica (o PIB russo é sensivelmente a metade do PIB francês) para poder pesar na ordem mundial, que se move inexoravelmente para uma Ásia, onde a Índia e China tem mais de um terço da população mundial e terão em breve, um peso económico semelhante.
A Rússia nem sequer tinha capacidade de derrotar os fragmentados rebeldes sírios, sendo absolutamente determinante a intervenção do Irão em socorro de Assad.
O ataque a Alepo contou com uma aviação russa e de Assad, mas também com milícias iraquianas (o principal contingente, cerca de 20 mil homens) e o Hezbollah libanês, enquadrados pelo exército iraniano.
O Irão - não é uma Rússia ou Estados Unidos - é hoje o principal no Oriente Médio.
A Turquia, ator importante da região, acabou por se aproximar da Rússia e do Irão, depois da fracassada tentativa de golpe do Estado.
Mesmo assim, Putin tem capacidade para causar danos e fazer uma paz e uma democracia e não para o seu país, mas sobretudo para a aliança com os neonacionais, que vêem nele um parceiro que pode prestar bons serviços.
Foi assim com Trump e com o apoio declarado a Marine Le Pen.
A 12 de Dezembro, o FPO, assinou um acordo de cooperação com Putin, onde se afirma que "um projecto de educação para o patriótica das jovens gerações".
O que espanta é que ainda haja quem se considere progressista e enalteça simultaneamente os feitos de Putin.
Os cidadãos europeus não podem contar que os enfraquecidos dirigem os Estados da União são capazes de travar o combate ideológico contra o populismo neonacionalista - é uma batalha que tem que travar com as suas mãos.
Os que recusam uma retórica dos populistas na Europa não estão em menor número que os que defendem, de modo que sofrem os efeitos de uma crise de liderança das elites hoje desmoralizadas, num combate fundamental para os que conseguem ganhar
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico.
Diretor de Projetos no Arab Reform Initiative (ARI)
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