sábado, 14 de abril de 2018

Prenúncios de incerteza

OPINIÃO
Germano Almeida
14 de Abril de 2018, 12:13
A “nova Guerra Fria” é muito mais complexa e imprevisível que a versão original. 
A junção de um presidente americano impreparado com um líder russo mestre da encenação pode ser explosiva. 
A Síria pode ser o balão de ensaio dos tempos perigosos que estão para vir.

"A corrida ao armamento nuclear é como dois inimigos que lutam até à morte com gasolina até à cintura, um deles tem três fósforos e o outro tem cinco" — Carl Sagan

“O existir não pede apenas coragem e equilíbrio, mas também algum desapego, porque a nenhum de nós cabe melhorar o mundo ou parar o tempo" — Rentes de Carvalho

“A guerra, se a avaliarmos pelos padrões das guerras anteriores, não passa de uma impostura. Porém, embora irreal, a guerra não perdeu sentido. Absorve o excedente de bens de consumo e ajuda a manter essa atmosfera mental indispensável a qualquer sociedade hierárquica. A guerra é hoje questão puramente interna. Nos nossos dias já não lutam uns contra os outros. A guerra trava-se entre cada um dos grupos dominantes e os seus próprios súbditos, consistindo o objetivo da guerra não em fazer ou impedir conquistas territoriais, mas sim em manter intacta a estrutura da sociedade. A própria palavra «guerra» tornou-se, portanto, enganadora” — 1984, de George Orwell

“Estou muito assustada. Na Guerra Fria havia protocolos e algumas regras e linhas de comunicação. Agora… bom, agora temos dois tipos, Trump e Putin, que são ambos muito orgulhosos e egocêntricos. Ambos de um estilo emocional e a certo ponto espalhafatosos. E receio que passem para um ponto em que saiam dos seus cantos e queiram fazer danos colaterais” — Julia Ioffe, jornalista e analista política russo-americana

Há um cheiro a napalm no ar.

Não no sentido literal, mas no ambiente, nas interpretações cénicas e nas intenções reveladas pelos líderes das principais potências.

A tragédia síria, a ter agora novo pico de tensão com a “reação ocidental” a mais um ataque com armas químicas feito pelo regime de Assad contra o seu próprio povo, é mais um indicador claro, e muito preocupante, do que pode estar aí para vir.

Os dados estão em constante reavaliação e torna-se difícil apontar caminhos claros.

Mesmo assim, há duas tendências evidentes: acabou a “distensão” que marcou o pós-queda do Muro de Berlim (com a crise financeira de 2007-2011, primeiro, e o aumento dos conflitos regionais agravado na segunda década do século 21, depois); a perda de ascendente dos EUA em relação às outras potências está a alterar a correlação de forças (americanos menos “poderosos; chineses e russos a galgar terreno em diferentes áreas de influência).

Vivemos na era da mudança acelerada, no ponto de vista tecnológico (e, por consequência, também mediático, laboral e ambiental). 
E da incerteza crescente, nos planos económico e político.

Consequências destas alterações: redução da influência dos grandes partidos tradicionais (tendencialmente mais inclusivos, abrangentes e moderados) e crescimento de fenómenos populistas, demagógicos e mais propensos a intolerâncias com minorias e diferenças.

Assim se explicam disparates eleitorais recentes e sonoros em democracias supostamente maduras e consolidadas (Brexit no Reino Unido; eleição presidencial de Trump nos EUA), provocando distorções e sentimentos contraditórios nos próprios eleitorados que, por mero protesto ou pura negligência, quiseram testar o inaceitável, ainda que com algumas razões para recusar o “habitual”.

Grandes consensos democráticos estão postos em causa (projeto europeu, aposta nas instituições internacionais) e novos fantasmas ganham força: o paradoxo dos protecionismos e nacionalismos num mundo cada vez mais aberto, global e multilateral; aumento do peso e da influência de líderes autoritários e de perfil ditatorial (ainda que eleitos democraticamente), como Erdogan na Turquia, Orban na Hungria, Duterte nas Filipinas ou, é claro, Vladimir Putin na Rússia.

E há também, num falso silêncio mas em grande escala global, aquilo que tem tudo para ser a grande história política das próximas décadas: a espantosa ascensão chinesa.

A grande ascensão silenciosa

Se o último meio século celebrou a hegemonia americana, o essencial do século que atravessamos poderá ser marcado pelo novo domínio chinês.

A China tem quatro vezes e meia a população dos EUA. 
Já vai em três quartos do total da riqueza dos americanos (há uma década tinha só metade).

Os chineses ultrapassaram o Japão no valor do PIB pelo final de 2012 e, cinco anos e meio depois, já criam quase o triplo da riqueza dos japoneses (11,7 triliões para 4,8 triliões de dólares).

E gastam já mais de um terço das despesas militares dos Estados Unidos (cerca de 250 mil milhões de dólares para 650 mil milhões dos americanos).

No século 21, os chineses ganharam 324 medalhas olímpicas, menos 113 que os americanos, é certo, mas já 70 mais que os russos.

A Google abriu, há meses, um centro de Inteligência Artificial em Pequim e, de acordo com dados da US National Science Foundation, a China, pela primeira na história, publicou mais artigos científicos que os EUA durante o ano de 2017 (426 mil para 409 mil).

Enquanto em Washington há uma administração que põe em causa os méritos da investigação científica e da aposta no conhecimento, de Pequim vemos uma longa estratégia, com múltiplas vertentes e passa por aumento evidente da influência e do prestígio chinês à escala global.

Novas centralidades

Se a ascensão chinesa passa pelo crescimento em diversas áreas e penetração em diferentes espaços regionais, há um outro elemento a ter em conta, com maior potencial de risco: o regresso da tensão entre EUA e Rússia.

A Donald Trump interessa mostrar que, afinal, não é um “puppet” de Vladimir Putin.

Para o “czar” de Moscovo conta exibir uma força que a mera consulta dos factos não confirma – mas a perceção ilude.

A Rússia terá a economia da dimensão da Espanha, mas consegue transmitir um grau de ameaça muito superior.

É, sem dúvida, uma potência regional e graças a uma inteligente gestão de alianças feita por Putin está a alargar essa esfera de influência.

O “America First” de Trump interessa, acima de tudo, a Putin pelo espaço de manobra que ganha perante a “desistência” americana em teatros como a Síria ou o Leste europeu.

A recente cimeira a três em Ancara entre Erdogan, Putin e Rohani mostrou que essa tríade Turquia/Rússia/Irão está para ficar – e tem Moscovo como eixo central desse triângulo que, aos olhos euroatlânticos, nos parece tão distante.

Os turcos estão na NATO e até há poucos anos queriam entrar na UE. 
As constantes recusas e adiamentos de Bruxelas, Londres e Paris fizeram com que a Turquia ganhasse um ressentimento durável para com os europeus.

Erdogan foi-se virando progressivamente para Moscovo e acabou de inaugurar a primeira central nuclear turca com Putin ao lado (e forte injeção de capitais de Moscovo). 
Dez por cento do fornecimento de energia aos turcos passa a ser garantida por um projeto viabilizado financeiramente pelos russos.

Enquanto isso, e apesar de Erdogan e Assad serem rivais de longa data, a Síria nada fez para evitar que tropas turcas entrassem pelas suas fronteiras para que, em Afrin, os curdos do YPG fossem perseguidos e derrotados.

Isto está mesmo a mudar.

A Síria como balão de ensaio

A ofensiva norte-americana, britânica e francesa da madrugada de sábado, no pós ataque químico de Douma, terá sido mais um capítulo neste teatro de enganos, ilusões e novas tendências.

Era suposto que a América de Trump estivesse “de retirada militar total” do palco sírio.

Mas a obsessão do atual presidente americano de se demarcar do seu antecessor deve levá-lo a ensaiar um “ataque punitivo” ao regime de Assad, provavelmente em escala superior ao que fez há exatamente um ano sobre a base síria de Shayrat (59 mísseis cruzeiro Tomahawk).

Não ficará em causa a continuidade de Assad (agora ainda mais garantido militarmente por Moscovo).

A questão é que o cenário de abril de 2018 comporta muitos mais riscos do que se apresentava em abril de 2017.

A tensão entre EUA e Rússia é muito maior. 
O grau de desconfiança dos russos nos americanos está em máximos históricos de 70%.

Esqueçam o ‘namoro’ de estilos entre Trump e Putin. 
A primeira grande confrontação entre os dois “strongmen” de Washington e Moscovo não deverá acabar em conflito bélico direto (não se chegará a tanto), mas o envolvimento militar russo na Síria faz temer o pior, perante um eventual ‘erro de alvo’ num possível ataque americano em solo sírio.

Trump elegeu o Irão como o grande inimigo. 
E o Irão é, por estes dias, um dos maiores aliados da Rússia e do regime de Assad em Damasco.

Ao mesmo tempo, a atual administração americana abraçou a nova liderança saudita do príncipe Mohamed bin Salman (acabado de fazer um ‘tour’ vitorioso de três semanas pelos EUA) e reforçou o apoio a Israel.

Certamente sem ser por acaso, o poderoso e jovem príncipe saudita fez história em dizer, de forma inédita para quem manda em Riade: “Acredito que os palestinianos e os israelitas têm o direito de ter a sua própria terra”.

Até ao início de junho há vários ‘cisnes negros’ a aparecer ao fundo do lago: a Síria, a decisão americana sobre o que fazer ao acordo nuclear do Irão, a guerra comercial EUA/China, a tensão diplomática criada pelo caso Skrypal, o encontro inusitado Kim/Trump.

O clima de hostilidade é crescente. 
A corrida ao armamento está em marcha. 
As alianças estão a clarificar-se.

Correndo bem, não acabará muito mal. 
Falta saber o que restará se correr muito mal.

Autor de dois livros sobre a presidência Obama e outro sobre Hillary Clinton e a eleição presidencial de 2016

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