Análise Jorge Almeida Fernandes
30 de setembro de 2017, 7:50
Rajoy, Puigdemont e Ada Colau (presidente da cidade de Barcelona) com o rei Felipe VI
Não haverá referendo amanhã. Os nacionalistas substituíram-no pela “mobilização social”. Mas não se entendem sobre uma proclamação unilateral de independência.
Amanhã, 1 de Outubro, não será o grande dia do referendo — o 1-O — simplesmente porque não haverá referendo.
As urnas serão apenas o chamariz.
O importante vai jogar-se na rua.
O 1-O foi concebido como a primeira etapa duma escalada de mobilização nacionalista que se prolongará pelos dias ou semanas seguintes.
Alguns vislumbram uma rebelião contra Espanha que deveria culminar na Declaração Unilateral de Independência (DUI).
E depois?
O projecto de independência parece encerrar uma “utopia vazia”.
Os independentistas tomaram a iniciativa política.
O Governo espanhol assumiu uma postura reactiva.
Os independentistas substituíram a política pela “mobilização social”.
Rajoy substituiu a política pela aplicação da lei.
Não é o momento de reflectir sobre a mitologia nacionalista ou sobre o Estado de Direito, mas de olhar a estratégia e o projecto independentistas.
Que se passará amanhã?
Os independentistas reunirão pequenas multidões para defender os locais de voto, onde os seus activistas se concentraram antecipadamente para tornar inoperante a polícia.
Em certos casos, os pais dormirão com os filhos nas escolas onde sejam instaladas assembleias de voto.
Convidam as polícias a cometer um “erro fatal”.
Os Mossos d’Esquadra, polícia autonómica, anunciaram que não usarão a força contra a resistência passiva.
A Guardia Civil estará na mira e sob alta pressão por parte dos nacionalistas.
Os independentistas precisam de imagens que representem ou simulem uma participação maciça de eleitores, e em festa.
Será o primeiro acto de uma longa representação.
As televisões passariam a transmitir em directo a “Catalonia Revolution”.
Esquecidas as urnas, o “referendo” legitimador passaria a ser a mobilização.
O parlamento catalão saltou por cima da Constituição e das normas do Estatuto catalão, invocando a recusa de diálogo por parte de Madrid.
O objectivo foi tornar irreversível o processo de independência.
O escritor catalão Xavier Bru de Sala resume a sua lógica: “O 1-O foi concebido como uma jogada ‘win win’.
Se sai bem, soberania catalã. ~
Se o impedem pela força pública, aceleração dum movimento social contrário à Espanha.”
E depois de domingo?
Os dirigentes da Generalitat e os partidos independentistas multiplicam as declarações contraditórias sobre a DUI.
O presidente Carles Puigdemont ora diz que a DUI ainda não está em cima da mesa como dá a entender o contrário.
A sua formação, o Partido Democrata Europeu Catalão (PDeCAT), afirmou há dois dias que não haveria independência unilateral.
Na sexta-feira, mudou de opinião.
O vice-presidente Oriol Junqueras, líder da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), demarcou-se ambiguamente da DUI, coisa que nunca o pareceu entusiasmar, mas também parece ter voltado atrás.
Sabe que a independência unilateral dividirá a Catalunha.
Haveria um guião alternativo: convocar eleições autonómicas antecipadas.
Os independentistas poderiam aproveitar a maré anti-Rajoy para desta vez terem a maioria absoluta, em votos e deputados.
Neste cenário, segundo as sondagens, a ERC seria o vencedor.
E Junqueras poderia realizar o sonho de presidir à Generalitat e negociar com Madrid em posição de força.
Posição de força reforçada não só pela “rebelião catalã” mas sobretudo pela crise política que se anuncia em Espanha e que poderá marcar o fim do poder do Partido Popular e de Rajoy, forçando um debate constitucional sobre autonomias e federalismo.
As eleições têm, no entanto, um grave problema para a frente independentista, que é um conglomerado política e ideologicamente heterogéneo.
Uma campanha eleitoral abriria imediatas fissuras.
Resta portanto o cenário “heróico e com mártires” que parece seduzir Puigdemont.
Se o “referendo de mobilização” se concretizar, com uma maré humana nas ruas de Barcelona, então Puigdemont poderia repetir o gesto trágico de Lluís Companys, a 6 de Outubro de 1934: assomar à varanda da Generalitat e proclamar “La República Catalana”.
BPI na rota do furacão da independência da Catalunha
O factor CUP
A Candidatura de Unidad Popular (CUP) faz parte de uma galáxia designada por Esquerda Independentista e representa uma reencarnação do velho anarquismo catalão. Indispensável para a maioria independentista no parlamento, assumiu rapidamente um papel de guia estratégico do “processo”.
À CUP se deve o afastamento de Artur Mas e a sua substituição por Puigdemont, tal como a linha da “fuga para a frente”.
E tem outro trunfo: eles são “os donos da rua”.
Quem organiza as grandes mobilizações são a Assembleia Nacional Catalã e a Òmnium Cultural.
Mas os “cuperos” são a força de choque na luta urbana.
A CUP anunciou a sua orientação estratégica para a próxima fase: “A desobediência é imprescindível para conquistar a independência e romper com o Estado espanhol.
Não há via legal para a independência, só há a via legítima.”
Promete evitar qualquer veleidade de “traição” com uma “mobilização generalizada”.
O 1-O “não é o final de nada, apenas um marco mais a caminho dos nossos objectivos, uma república independente dos Països Catalans.”
Não devem ser subestimados no momento em que a “legitimidade” se transfere para a rua.
Um movimento visceral
Se convocar eleições é uma ameaça à coesão da frente independentista, muito mais é o debate do que seria uma Catalunha independente, entre forças de raiz neoliberal — como o PDeCAT — e anarquistas da CUP que propõem a ruptura com a UE.
Mas há outra dimensão, sublinhada pela socióloga Marina Subirats: “Para muitos catalães, a independência é uma utopia de substituição.”
O independentismo sempre existiu na Catalunha, tinha um partido como a ERC, mas cresceu enormemente nos últimos anos.
Passou a fundir todas as vertentes do mal-estar da sociedade, desde a ressaca anti-espanhola pela sentença do Tribunal Constitucional sobre Estatuto, em 2010, aos efeitos da crise económica, passando pela perda de referências após o desmoronamento das velhas utopias, como a comunista.
“Não é racional, é visceral.
É o desejo de sair de onde estamos.”
É a sua força e a sua fraqueza.
Tem uma tradução simples: “Primeiro sejamos independentes e depois se verá.”
E uma condição exasperante: “Se entramos na discussão do que será a Catalunha independente, (...) veremos que as utopias são muito diferentes e que não estamos de acordo em quase nada. (...) começaria a romper-se a unidade independentista.”
Subirats tem alguma simpatia pelo movimento independentista mas observa: “O independentismo queimou tantas etapas que se dizes que queres negociar parece uma traição.”
As “revoluções” são emocionalmente atraentes.
Mas, para lá do “sair de Espanha”, nada mais há no horizonte senão a utopia vazia em que “os sonhos de uns podem ser os pesadelos dos outros”.
O resto, a hipótese de uma solução negociada, aguarda melhores tempos.
E, sobretudo, é preciso saber o que acontecerá nos próximos dias.
jorge.almeida.fernandes@publico.pt
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