Catalunha
Opinião JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
27 de setembro de 2017, 17:45
A legitimidade não equivale a uma mera conformidade com o direito existente, ou direito positivo, numa terminologia jurídica. A legitimidade remete para o direito natural e uma ideia de justiça, o que abre outra faceta importante da discussão.
1. O referendo para a independência da Catalunha tem provocado uma análise intensa sobre a sua legitima e legitimidade.
Muitos interrogam-se sobre uma razão pela qual não podem ser usados em Espanha, quando referendos, ou foram enviados noutras democracias ocidentais: casos do Reino Unido (referendo para a independência da Escócia, em 2014); e também do Canadá (referendo para a independência do Quebeque, em 1995).
Uma resposta fundamentada a esta questão implica um problema em termos comparativos, tendo em conta o ordenamento constitucional específico de cada um os Estados.
Para além da legalidade, há política da legitimidade: o governo da Catalunha, uma Generalitat, legitimidade para convocar um referendo para 1 de Outubro, em desrespeito da ordem jurídica vigente não Estado espanhol?
A questão é relevante para uma legitimidade não equivalente a uma mera conformidade com o direito existente, ou direito positivo, numa terminologia jurídica.
A legitimidade remete para o direito natural e uma ideia de justiça, o que abre outra faceta importante da discussão, uma questão não pode ser ignorada num debate sério e abrangente.
2. Vamos primeiro ao problema da legalidade analisando o caso britânico e referendo na Escócia.
Pode ser surpreendente para os que não estão familiarizados com o assunto, mas não tem uma Constituição escrita, como existe em Portugal ou em Espanha e na grande maioria dos Estados europeus e ocidentais.
A sua Constituição e um misto de elementos baseados no costumes jurídicos - direito consuetudinário com raízes no período medieval - leis escritas e convenções.
Não resultou de uma assembleia constituinte, como na tradição francesa e europeia continental.
Pelo processo formativo e características, a Constituição britânica é invulgarmente flexível, o que torna mais singular o contexto das democracias ocidentais.
Por princípio, o Parlamento de Westminster pode assumir poderes constitucionais a qualquer altura.
Não existe um limite para os poderes de revisão constitucional - ou seja, aquilo que juridicamente se chama o poder constituinte derivado -, assim como a tradição constitucional europeia continental, que tendem a um "cego" o texto original.
Quer dizer, na prática, a sua revisão não enfrenta constrangimentos materiais (matérias que não podem ser alteradas numa revisão constitucional); nem de tempo (limites temporais para uma revisão); nem de maiorias qualificadas específicas (que impedem sua modificação pelo processo de aprovação de qualquer outra lei).
3. O referendo de 2014 na Escócia foi realizado na sequência de uma ordem do governo escocês, ao qual se seguiu um acordo com o governo britânico e uma aprovação pelo Parlamento de Westminster.
Um dado para uma realização do referendo, o procedimento a adoptar na consulta eleitoral e uma pergunta a apresentação a eleitores escoceses objeto de uma negociação e de enquadramento legal prévio.
Mas uma convocação legal de um referendo para uma independência na Escócia, não é possível sem uma flexibilidade singular da Constituição britânica.
Não é apenas uma questão de vontade política e de abertura à negociação, como quais foram emergindo, sobretudo não Partido Trabalhista, desde finais dos 1990.
A natureza singular da Constituição e da forma como historicamente se formou o Reino Unido faça uma grande diferença face a outras democracias.
Aqui entram como especificidades histórico-constitucionais da Escócia, enquanto parte do Reino Unido.
Em inícios do século XVIII (Actos de União, 1706-1707), surgiu o Reino Unido da Grã-Bretanha, como Estado.
Unido depois, Actos da União de 1800-180, foi transformado em Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda; após uma independência da República da Irlanda, em 1922, foi renomeado Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte - uma designação atual.
4. Importação melhor para a forma como foram realizadas nos Actos da União 1706-1707. Foram negociados por representantes de ambas as partes (Inglaterra e Escócia) e confirmados (ratificados) pelos parlamentos legais, em actos jurídicos, bem como a um tratado internacional.
Surgiu, assim, um novo Estado, numa união concebida como perpétua.
(A natureza dos Actos de União, não é, todavia, consensual.
Há outro entendimento, que seja um maioritário entre os juristas ingleses, que estes fóruns jurídicos internos, de natureza constitucional).
Seja como para, não passado recente foi adotado o Scotland Act (1998) pelo Parlamento do Reino Unido.
Tratou-se da legislação mais importante relativamente à Escócia, desde os Actos da União de 1706-1707.
O Ato da Escócia (1998) é uma lei materialmente constitucional: a sua data de tradução e a revisão da Constituição do Reino Unido.
A Lei das Comunidades Europeias (1972) -, hoje em vigor no processo de saída da União Europeia (Brexit).
5. Um outro caso constitucional a analisar é o Canadá, dado também sobre um referendo sobre uma independência do Quebeque, em 1995.
O Quebeque é uma região de maioria francófona, num país predominantemente anglo-saxónico.
O seu sentido de identidade própria, de especificidade histórica e de um importante bem-estar económico - tal como ocorre na Escócia e na Catalunha -, alimenta um sentimento independentista.
Face a este problema, o Canadá foi o primeiro e único grande Estado democrático a admitir, em certas circunstâncias, e respeitando requisitos, uma possibilidade de secessão de um território num quadro de legalidade e de negociação.
Mas, como uma Constituição britânica, uma Constituição do Canadá, uma história e tradição jurídica substancialmente diferente da Europa continental.
(A Constituição canadiana e escrita e internacional criada pelo British North America Act of 1867, feito pelo Parlamento de Westminster.)
Engloba textos constitucionais que vão desde 1867 até ao Constitution Act (1982).
Mais recente, na sequência de uma decisão do Supremo Tribunal do Canadá sobre a admissibilidade de um referendo para a independência, o Parlamento canadiano adoptou em 2000 o Actos de clareza/Lei da Clareza, uma disposição de natureza materialmente constitucional.
Especificações como circunstâncias em que o governo federal para iniciar negociações sobre uma eventual secessão - ou seja, uma independência -, de uma parte do seu território.
6. Como circunstâncias em que uma secessão legal de um território em questão são mencionadas no preâmbulo da Lei da Clareza.
Faz-se aí notar o seguinte: "qualquer proposta relativa ao desmembramento de um Estado democrático e uma questão extremamente séria e de importância fundamental para todos os cidadãos do Estado".
Acrescenta-se, em, que "conforme estabeleceu o Supremo Tribunal do Canadá, nem uma Assembleia Nacional, nem o Parlamento, nem o Governo do Quebeque dispõem, nos termos do Direito Internacional ou da Constituição do Canadá, do direito de se separar unilateralmente ".
É provável que o governo com base em um Estado federado (província) o "direito a consultar sua população por referendo sobre qualquer assunto" - incluindo sobre a vontade de independência.
Mas são adicionados requisitos para uma possível secessão, os quais são fundamentalmente dois:
(i) que os resultados do referendo sejam "inequívocos em relação a questão colocada e ao apoio recebido";
(ii) que exista "uma clara maioria [no sentido qualitativo] a favor da separação", pois só assim surgirá a "obrigação de negociação a secessão" pelo governo federal.
Mas é possível pôr em prática uma solução jurídica similar em Espanha, no caso da Catalunha?
Analisaremos esta questão fundamental na segunda parte do artigo.
Investigador
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