REPORTAGEM
Camilo Soldado
6 de Dezembro de 2017, 22:53
Militar português morreu em Angola ainda na fase inicial da Guerra Colonial. Volvidos 54 anos, os restos mortais chegaram ao cemitério da sua terra natal.
Hoje com 74 anos, Reinaldo dos Santos recorda o tempo de serviço cumprido em Angola, entre 1965 e 1967.
Foram 28 meses.
Esteve destacado como enfermeiro da polícia militar em Luanda e fala com o PÚBLICO na rotunda que serve de homenagem aos mortos na Guerra Colonial, à entrada de Tondela, em Viseu.
Ali estão assinalados 49 nomes de homens naturais do concelho que foram combater nas ex-colónias, quando estas procuravam libertar-se do domínio português.
Nenhum deles voltou.
Reinaldo vai apontando para alguns dos nomes gravados nas placas metálicas com expressões de familiaridade.
No monumento está recordado um seu primo direito, entre outros nomes que lhe são conhecidos.
Mas numa das chapas está inscrito o nome António C. L. Silva e é por causa dele que um contingente de antigos pára-quedistas se encontrou nesta quarta-feira numa pequena localidade dos arredores de Tondela.
Demorou 54 anos, mas os restos mortais do militar António Lopes da Silva chegaram ao cemitério de Lobão da Beira, a sua terra natal.
Morreu em combate no distrito de Úcua, em 1963, no Norte de Angola, e foi sepultado em Luanda, no talhão militar do então cemitério Novo (agora cemitério de Santana), onde o corpo permaneceu.
Por força da filha, que tinha dois anos à data, os restos mortais regressaram a Portugal, depois de décadas terem passado, um regime ter caído e um país novo se ter levantado.
Emigrada nos Estados Unidos, Ernestina Silva nunca deixou de acreditar que seria possível localizar o corpo do pai e devolvê-lo à terra onde nasceu.
António Lopes da Silva tinha 22 anos quando morreu e deixou Ernestina, hoje com 56 anos.
Cresceu rodeada de relatos familiares sobre o pai.
Mas, apesar de tudo o que lhe contavam, desconhecia tanto a causa de morte como o local da sepultura.
Sargento na reserva investiga casos
O ponto de partida para esta história é Isidro Esteves, um sargento na reserva que dedica parte do seu tempo à investigação sobre pára-quedistas mortos nas ex-colónias.
Através deste trabalho de recolha de informação, Isidro Esteves, de 77 anos, ofereceu um “onde” e um “como” à filha do militar Lopes da Silva.
Foi através das redes sociais, onde o sargento publica o resultado das suas investigações, que Ernestina Silva descobriu o que tinha acontecido com o pai.
“Numa certa noite, recebo uma chamada já tarde.
Passava da meia-noite.
Era uma senhora dos Estados Unidos.
Primeiro identificou-se, depois começou a chorar", conta Isidro.
Era a filha.
"Acabou por me confessar que tinha descoberto onde o pai estava enterrado e como é que ele tinha morrido.”
A partir da mesma publicação do Facebook, nasceu uma conversa entre Manuel Pereira - que não conheceu António Lopes da Silva, mas que cumpriu serviço como pára-quedista entre 1980 e 1982 – e Ernestina.
Com familiares em Lobão da Beira, Manuel Pereira serviu de ponte com um emigrante português em Luanda chamado Carlos Cláudio, que ajudou a localizar a campa de cimento.
Passado um longo processo, foram exumados os seus restos, no meio dos quais ainda se encontrava o brevet oxidado de pára-quedista.
António Lopes da Silva teve nesta quarta-feira direito a um cortejo fúnebre que começou ao início do dia em Lisboa, passou pela base de Tancos para uma homenagem promovida pela União Portuguesa de Pára-quedistas (UPP), que teve a colaboração da Força Aérea Portuguesa e do Regimento de Pára-quedistas da Brigada de Reacção Rápida.
Vida e morte de António
Reinaldo dos Santos não chegou a Angola a tempo de se cruzar com António Lopes da Silva.
Ouviu a notícia da sua morte ainda em Portugal.
Lembra-se, no entanto, que já na capital angolana tirou uma fotografia na campa do camarada de armas.
Sobre ele, é parco na descrição.
“Éramos miúdos.
Era bom rapaz.”
Além de fotografias do pai, Ernestina Silva dispunha de pouca mais informação, ao ponto de, em Lobão da Beira, correr o boato de que o pai teria morrido no decorrer de uma briga entre camaradas.
Apenas um boato, garante Isidro Esteves, que integrava o mesmo grupo de Lopes da Silva, quando este foi atingido.
Hoje com 72 anos e tendo combatido em Moçambique, António Pais Ferreira conhecia o militar desde criança.
Eram os dois de Lobão da Beira e recorda que era um de nove irmãos, numa família humilde que vivia da agricultura.
Foi desta realidade que António Lopes da Silva partiu, para integrar uma das vagas que foi “para Angola, rapidamente e em força”, conforme anunciou Salazar em Abril de 1961.
Esse mês sucedeu o infame Março de 1961, marcado pelos massacres do Norte de Angola que significaram a eclosão da guerra colonial no país.
Foi essa onda de violência que apanhou a fazenda de exploração de café do Bom Jesus, em Úcua, uma zona densamente arborizada da província do Bengo.
A fazenda tinha sido incendiada e tinham sido mortas as pessoas que lá viviam, conta o sargento, acrescentando que a missão passava por reocupá-la, “permitindo que o dono voltasse a fazer a exploração”, recorda Isidro Esteves.
Passaram ali a noite de 2 para 3 de Outubro de 1963 e, na manhã seguinte, um grupo de cerca de 60 homens iniciou a marcha ao nascer do sol para outra fazenda, percorrendo uma picada (caminhos abertos pelos colonos).
Pelas 7h de dia 3 de Outubro de 1963 ouviu-se um disparo e um homem caiu.
“Foi alvejado pelas costas.
A bala entrou pelo lado esquerdo das costas e saiu pelo lado direito do peito."
Era António Lopes da Silva.
Sendo o homem do cão, seguia na frente do grupo.
Foi a única baixa daquele dia.
“Foi a primeira morte a que assisti na guerra.
Estava a poucos metros”, lembra o sargento.
Joaquim Coelho, também pára-quedista, foi para Angola logo em Setembro de 1961 e só regressou à “metrópole” em 1963 para fazer um curso, tendo ainda convivido alguns meses com o militar.
Recorda António Lopes da Silva como uma pessoa “aberta e alegre”.
“Não era toda a gente que lidava com cães de guerra”, resume o pára-quedista, hoje com 78 anos
Trazer o corpo
Para concretizar o regresso do corpo do militar, a UPP formou um grupo de trabalho.
O major general Cristovão Avelar de Sousa já tinha participado na recuperação de três corpos na Guiné Bissau há dez anos e fez agora parte do processo de Lopes da Silva.
No caso guineense, os corpos estavam enterrados “no meio do mato, no local onde morreram em combate” e havia já “poucas referências sobre o antigo aquartelamento onde eles estavam inumados”.
Neste caso “foi muito mais simples”.
Apesar de o processo ter demorado cerca de um ano, o corpo estava num cemitério em Luanda e, “depois de obtidas as devidas autorizações, foi feita a trasladação”, conta Avelar de Sousa.
Os encargos com a trasladação foram suportados pela UPP e pela filha do militar.
Estado não estava preparado
Na fase da guerra em que morreu, as estruturas do Estado Português “ainda não estavam preparadas” para trazer os corpos de volta a Portugal, explica Cristóvão Avelar de Sousa. “Na altura, para vir o corpo era necessário que a família manifestasse vivamente que queria que ele viesse.
Portanto ele faleceu, teve as suas honras militares e foi enterrado em Luanda."
O membro da UPP recorda que “nunca houve linhas definidas” para se levar a cabo essa operação de retorno dos militares que caíram.
E as linhas que havia “foram-se adaptando às circunstâncias”.
Dentro desta indefinição, acresce que há quem considere que os restos mortais dos portugueses devem permanecer em África.
Para o Isidro Esteves, a recuperação da memória dos camaradas que morreram é assumida como “uma missão”, para combater o silêncio sobre “os que foram e não voltaram”.
Ficaram lá “esquecidos, abandonados por causa da independência apressada”.
O silêncio, diz, não tem apenas um responsável.
Dos políticos – de todos os partidos, de várias gerações – aos familiares, “que não têm feito pressão nenhuma” no sentido de recuperar os corpos que ficaram nas ex-colónias.
No mesmo Cemitério de Santana, na estrada de Catete, estão centenas de militares portugueses, refere Isidro Esteves.
A busca por este desfecho vem-lhe da instrução de combate.
“Ensinaram-me que, acontecesse o que acontecesse, ninguém ficava para trás."
Todos os pára-quedistas com quem o PÚBLICO falou durante o dia das cerimónias fúnebres repetiram isso mesmo: “Ninguém fica para trás.
Nem vivo, nem morto."
Era já “altura de cumprir o nosso lema e trazer aqueles que faltavam”, entende Avelar de Sousa.
A persistência da filha e o lema dos paraquedistas ajudaram a que António Lopes da Silva, mais de cinco décadas depois, tenha sido finalmente devolvido a casa.
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