MÉDIO ORIENTE
Sofia Lorena
20 de Março de 2018, 7:00
Há uma “epidemia” chamada corrupção e grupos étnicos e religiosos que não voltaram a confiar uns nos outros.
Há um país por reconstruir e a ameaça do terrorismo e da desintegração – da Síria ou do Iraque.
O ultimato tinha data e hora, mas quando o momento chegou nada aconteceu.
Alguns iraquianos foram deitar-se, outros permaneceram à espera.
Quando George W. Bush surgiu nos ecrãs de televisão de canais em todo o mundo, já caíam bombas no Iraque.
As primeiras, junto à fronteira com a Síria, logo depois, em Bagdad, numa chuva de bombas que horas depois saberíamos ter sido apelidada “choque e pavor”.
Passaram 15 anos da invasão e do início da guerra, já houve diversas declarações de “missão cumprida”, mas a insegurança nunca mais desapareceu.
Hoje morre-se muito menos, mas nunca mais houve um dia sem mortes violentas. Entretanto, há mais gerações de iraquianos que só conhecem a guerra.
O actual primeiro-ministro, Haidar al-Abadi, lamenta “os erros da ocupação”, mas pede aos Estados Unidos que não abandonem o país “antes de concluir o trabalho”, poucos meses depois de ele próprio ter declarado “vitória” sobre o Daesh.
“A esta hora, forças americanas e da coligação iniciaram as fases iniciais das operações para desarmar o Iraque, libertar o seu povo e defender o mundo de um grande perigo”, anunciava Bush.
Assim começava a invasão anglo-americana – a chamada “coligação de voluntários”, países dispostos a participarem numa guerra ilegal, era essencialmente constituída pelos EUA e pelo Reino Unido, governado então por Tony Blair.
Mas muitos países, incluindo Portugal, participaram com contingentes pequenos ou médios (no caso de Portugal, a participação fez-se através da GNR).
Aliás, o ultimato tinha sido decidido dias antes numa cimeira realizada nos Açores, com o então primeiro-ministro Durão Barroso a servir de anfitrião a Bush, Blair e José María Aznar.
O Iraque não foi desarmado porque, afinal, as tão apregoadas armas de destruição maciça nunca apareceram.
O povo iraquiano livrou-se de Saddam Hussein, é certo, mas são tantos os iraquianos que nos últimos anos se arrependeram de ter desejado ver o ditador pelas costas.
“Antes tínhamos um Saddam, agora temos 100”, repetem.
“Com Saddam, podíamos fazer o que quiséssemos desde que não nos envolvêssemos na política e não fizéssemos nada contra o governo”, diz agora à Al-Jazira Sami Josef, cristão de Bagdad com 32 anos que perdeu o tio em combate com os EUA.
“Até hoje, peço a Deus descanso para a alma de Saddam”.
O povo que se pretendia libertar morreu às centenas de milhares (segundo alguns estudos, são mais de dois milhões os mortos), conheceu o terrorismo da Al-Qaeda, que ali se desenvolveu para combater os EUA até se tornar no Daesh que aterrorizou sírios e iraquianos.
O mundo, definitivamente, não ficou menos perigoso.
Pobreza extrema
Pelo menos um quarto dos iraquianos vive hoje na pobreza extrema – os últimos dados, de 2017, apontam para uma população de 39 milhões com a idade média de 20 anos.
Há muito desemprego, principalmente entre os jovens mais qualificados.
E ainda são muito poucos os iraquianos com acesso permanente a água e electricidade.
Na semana passada, o Presidente, Fuad Masum, recusou-se a aprovar o orçamento de 2018 por causa de “violações legais e constituições”: o chefe de Estado é curdo e os deputados curdos boicotaram a votação no Parlamento por causa da diminuição dos fundos atribuídos à sua região autonómica.
De nada parecem valer os sinais de paz enviados por Abadi, que permitiu a reabertura dos aeroportos do Curdistão Iraquiano aos voos internacionais e esta segunda-feira decidiu pagar, pela primeira vez desde 2014, os salários dos funcionários públicos da região.
Eleições em Maio
Com eleições legislativas previstas para Maio, Haidar estará a tentar normalizar as relações entre o Governo central e Erbil, depois do referendo sobre a independência que os curdos realizaram em Setembro – a verdade é que as relações nunca foram boas e com alguns curdos a manterem vivas as ambições de terem um Estado próprio, dificilmente alguma vez serão normais.
Horas depois do anúncio do envio de dinheiro para Erbil, a Turquia exigia a Bagdad que “expulse os grupos de militantes curdos do Norte do Iraque”, ameaçando “lançar uma operação na zona”, se necessário.
Não seria a primeira vez.
Os combatentes curdos turcos treinam desde sempre nas montanhas do Norte iraquiano e Ancara já os bombardeou várias vezes.
Agora, que acaba de tomar Afrin, na Síria, aos curdos deste país, tem pressa em pôr os combatentes do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) no seu lugar.
No Iraque destes últimos 15 anos morreu-se de tudo, e ainda se morre, só que menos.
À invasão, seguiu-se uma ocupação que destruiu todas as estruturas de Estado existentes e alienou a população árabe sunita (minoritária mas privilegiada nos tempos de Saddam), que constituía grande parte das forças militares e do funcionalismo público.
A guerra civil tornou-se inevitável: no pico, entre 2006 e 2008, morriam centenas de pessoas por dia e mais de cinco milhões fugiram do país – muitos destes encontraram abrigo em Damasco, de onde tiveram de voltar sem saber o que encontrariam, quando a revolta dos sírios foi brutalmente esmagada pelo seu regime em 2011.
Houve alguns períodos de acalmia, mas a vida nunca voltou a ser a mesma.
Centenas de milhares deixaram de ter como pagar a renda e ocuparam antigos hospitais ou o que restava de bases militares.
Outros, tornaram-se deslocados internos em fuga de ameaças.
As bombas e os ataques de milícias foram substituídos por checkpoints sem fim.
Mas parte da população tem medo da polícia e do Exército; com os xiitas no poder, as forças de segurança são na sua maioria formadas por este grupo religioso.
Os mortos do Daesh
Depois da Al-Qaeda no Iraque, e da brutalidade sem antecedentes do seu líder, o jordano Abu Mussab al-Zarqawi, os jihadistas sobreviventes, muitos com longas temporadas passadas em prisões americanas no país, reagruparam-se.
Assim nascia o Daesh, que começou por decapitar sírios até que o mundo acordou para a tragédia quando os decapitados começaram a ser americanos e britânicos.
Em 2014, o grupo nascido no Iraque mas que começou por aproveitar os vazios de poder na Síria, reentrava como um relâmpago no país do Tigre e do Eufrates, tomando províncias como Anbar e cidades como Mossul, a segunda maior do país.
Os três anos de operações militares (com apoio aéreo dos EUA e terrestre do Irão) para destruir o Daesh culminaram numa batalha de nove meses para recuperar o controlo de Mossul, com pelo menos dez mil civis mortos.
Os jihadistas foram derrotados mas não desapareceram: há uma semana, dois ataques lançados pelo grupo mataram pelo menos dez pessoas nas províncias de Mossul e Kirkuk, incluindo um xeque tribal sunita.
É provável que hoje não cheguem notícias de todas as mortes violentas, já que os jornalistas internacionais no país são quase inexistentes.
Aliás, com as atenções viradas para outras zonas do mundo, como as Coreias ou as constantes demissões na Casa Branca, já nem a Síria merece a cobertura que deveria ter (já para não falar do Iémen, entre outros conflitos).
“Pagámos a dobrar: quando o Daesh invadiu o Iraque vindo da Síria, causaram milhões de deslocados, mataram muitas pessoas; depois veio a segunda fase, quando começámos a libertar as nossas áreas.
A destruição é gigantesca”, diz o primeiro-ministro Haidar, entrevistado pela revista Time no seu gabinete dentro da Green Zone, sede da ocupação dos EUA.
“Estimámos que precisamos de 46 mil milhões de dólares (37 mil milhões de euros), sem contar com habitação, e outros 45 mil milhões só para as casas que foram destruídas. Sabemos que o mundo não está pronto para uma doação destas”.
“Quero sentir-me seguro”
Haidar explica que é por isso que aposta noutra frente e está a “encorajar o investimento externo”.
De acordo com os seus contactos, garante, já ninguém tem medo da segurança, o problema é mesmo “a epidemia da corrupção”.
“Este combate é muito difícil.
A mudança fundamental é tornarmos o nosso sistema mais transparente, removermos a burocracia.
Porque a corrupção esconde-se na burocracia”.
Os políticos iraquianos asseguram que nunca se viveu tão bem no Iraque desde 2003 como agora – nem todos os iraquianos concordam.
“O meu irmão mais velho cresceu uns anos antes de mim e tinha amigos de diferentes províncias.
Eu já só tenho amigos de Anbar [fronteira com a Síria, província de maioria sunita], não conheço ninguém de Bassorá [principal cidade e província do Sul xiita] nem de nenhuma outra zona”, diz à Al-Jazira Mahmoud Zaki, 34 anos.
“Por causa do que aconteceu com a invasão e o sectarismo que veio depois, o tecido da sociedade partiu-se, afastámo-nos uns dos outros”.
Zaki, que passou dois anos em prisões americanas sob suspeita de apoio à rebelião, diz que não quer ser rico nem tem ambições extraordinárias para o futuro.
“Só quero uma vida decente, quero sentir-me seguro, quero que a minha família esteja segura”.
Não é pouco.
s.lorena@publico.pt
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