sexta-feira, 23 de março de 2018

O que é o putinismo e para onde é que ele nos leva?

CONVERSAS À QUINTA
José Manuel Fernandes
22/3/2018, 20:22

Putin foi de novo eleito Presidente da Rússia, consolidando um regime centrado no culto do homem forte e que desdenha as regras das democracias liberais. 
Um regime com muitos inesperados admiradores.


Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto debatem as características do regime russo e procuram perceber o que significa este quarto mandato presidencial para Vladimir Putin para a Europa e para uns Estados Unidos liderados por Donald Trump.


quinta-feira, 22 de março de 2018

Ernestina e “os lutos inacabados do império”

GUERRA COLONIAL
Catarina Gomes
24 de Dezembro de 2017, 8:45

Durante os primeiros seis anos da guerra colonial, o Estado só pagava o regresso de militares vivos. 
Permanecem até hoje enterrados em África cerca de 1500 corpos. 
Muitas famílias já os esqueceram, algumas ainda não. 
A arqueóloga Conceição Vitoriano Maia foi à Guiné desenterrar o irmão. Otília Gonçalves só quer trazer “o mano” de Angola.

“Pedia a V.ª Ex.ª, pela sua saúde, já que não tive a sorte de trazerem o meu filho vivo, peço-lhe que mo mandem mesmo morto. 
Para eu o adorar e rezar ao pé daquele bom querido filho. 
Peço imensa desculpa a V.ª Ex.ª destas minhas tristes palavras, mas a dor é tão grande que não sei onde hei-de respirar. 
O nome do meu filho é Francisco da Luz Carloto.”

Sem querer, a carta de uma camponesa alentejana que não sabia escrever ajudou a mudar um pormenor da história.

Maria Florinda da Luz tinha sido informada por telegrama que o filho tinha morrido na guerra em Moçambique a 19 de Janeiro de 1967. 
Se o quisesse trazer, teria de pagar 12 mil escudos, o que equivaleria, aos preços de hoje (de acordo com o conversor da Pordata), a cerca de 4 mil euros. 
Era impossível, mas a mãe do soldado sentiu que, à sua maneira, tinha de fazer alguma coisa.

“A minha sogra era uma mulher sem estudos, mas bem resolvida”, lembra ao P2 a nora, Brígida Leitão. 
Partiu dela a ideia de ir ter com quem sabia, “o senhor presidente da junta”: “Ela a chorar disse-lhe tudo o que sentia, o que tinha no coração” e ele lá organizou e arrumou as frases à sua maneira, que assim seguiram, em tom submisso, para o ministro da Defesa, uma ousadia nos tempos que corriam.

Quem queria trazer os seus tinha de pagar e quanto mais longe morria o militar mais caro: trazer um corpo de Moçambique era o mais caro; da Guiné, por ser mais próximo, ficava um pouco mais barato, 7500 escudos (cerca de 2500 euros), lembra o livro de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, Os Anos da Guerra Colonial 1961.1975 (QuidNovi), que cita a carta da mãe e explica as suas repercussões

“A transladação era incomportável para a maioria das famílias, era uma sociedade ruralizada, com hierarquias, com uma desigualdade mais nítida e aceite do que é hoje”, explica Carlos Matos Gomes. 
O que, na prática, acontecia é que eram as famílias dos oficiais quem mais meios tinha para pagar pelo regresso dos seus mortos. 
“A transladação era para uma elite social”, constata o autor e coronel na reserva.

A grande maioria dos mais de cerca 1500 militares portugueses (de acordo com o levantamento mais recente feito pela Liga dos Combatentes) que permanecem até hoje enterrados em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique “são soldados e cabos, há alguns sargentos e muito, muito poucos oficiais”, constata Carlos Matos Gomes.

A não vinda dos corpos era uma das formas que assumia a pouca visibilidade da morte na guerra. 
Carlos Matos Gomes lembra, por exemplo, que, se morriam vários homens numa operação, os jornais tinham instruções para diluírem as mortes por vários dias, em pequenas notícias a uma coluna, de um a dois mortos de cada vez, publicadas em páginas interiores. 
Além disso, nota, os mortos que chegavam vinham em navios de transporte dentro de vulgares caixotes de madeira e as urnas eram desembarcadas longe da vista e desencaixotadas no depósito de adidos da Ajuda. 
Mesmo os feridos chegavam durante a noite.

A política de transladações permaneceu inalterada e sem grande polémica até à tal carta vinda da aldeia alentejana do concelho de Nisa, Tolosa. 
Brígida Leitão sabia da carta, mas desconhecia que o Estado tinha passado a assegurar as transladações depois da iniciativa da sogra. 
O que sabem é que Francisco da Luz Carloto veio de Moçambique e está enterrado no cemitério de Tolosa.

Foi pouco depois da carta, em Março de 1967, que as Forças Armadas passaram a assegurar os custos da transladação dos corpos de África, mas a família tinha, à mesma, algumas despesas, por exemplo, pagar o caixão de chumbo e o transporte do hospital militar até ao cemitério da terra natal.

Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes constatam na sua obra que, das 2238 baixas ocorridas entre 1961 e 1966, na altura, só foram trazidos para Portugal 326 corpos, o que representava apenas cerca de 15% do total de mortos desse período. 
Era visível que os custos eram o grande obstáculo porque de Moçambique, onde a despesa era maior, só vieram 5,5% dos corpos, de Angola 12,9% e da Guiné, por ser um pouco menos oneroso, um pouco mais, 27,2%.

“Mãe, o pai voltou para casa”

Ernestina da Silva — que só este mês, 54 anos depois da morte do pai em Angola, em 1963, conseguiu transladá-lo para Portugal — não sabe se, na altura, foi sequer dada a possibilidade à mãe de pagar os 10 mil escudos que eram exigidos à família, o que equivaleria a cerca de 4000 euros aos preços de hoje. 
Teria sido indiferente. 
Era impossível angariar essa quantia. 
A mãe vivia da agricultura, plantava batatas, tomates, faziam azeite e vinho. 
Teve aliás de emigrar para a Alemanha, deixando a filha com oito anos a ser criada pelos avós. 
Os pais do soldado morto também pouco podiam fazer, eram agricultores, nove filhos. Nunca houve campa.

Ainda devolveram à família a aliança e o mostrador do relógio Sigma que o soldado António Lopes da Silva usava quando foi morto, “que veio cheio de sangue”, e que Ernestina conserva até hoje dentro de uma caixinha de veludo. 
Nunca ninguém da sua família se lembrou de reclamar, nem saberiam como o fazer. 
Era assim. 
Aceitava-se.

E não era só a impossibilidade de trazer o corpo. 
À família nada foi dito sobre como tinha ocorrido a morte. 
Ernestina Silva sabia o dia em que o pai tinha morrido, 3 de Outubro de 1963, que tinha morrido em combate. 
Mais nada.

E esse não saber era “um nó” dentro de Ernestina, mesmo com 56 anos. 
Emigrada nos Estados Unidos, tornou o Facebook a sua ferramenta de busca, fez-se amiga de todos os que a pudessem ajudar, sobretudo pára-quedistas, como o pai era, e todas as semanas, ritualmente, ia “bisbilhotar” às suas páginas. 
“Encontrei o meu pai”, disse à filha um dia, que não acreditou, “tu és doida”. 
Pediu logo o contacto ao sargento pára-quedista, Isidro Moreira Esteves, que tinha posto na sua página daquela rede social uma fotografia de homenagem ao soldado António Lopes da Silva e que aceitou atender o telefone àquela desconhecida já madrugada dentro. Estava tão feliz que nem deve ter pensado na diferença horária, lembra o sargento na reserva. 
“Chorou, chorou uns bons minutos” e Isidro deixou-a chorar.

Isidro Esteves não tinha só posto a fotografia do pai de Ernestina, como faz com muitos outros pára-quedistas, ele tinha-o visto morrer cinco metros à sua frente. 
Na aldeia de onde António Lopes da Silva era natural, Lobão da Beira (concelho de Tondela), circulou a certa altura o rumor de que o soldado não tinha morrido em combate, que tinha sido morto numa briga com um colega militar, conta Ernestina. 
Agora, aquele sargento na reserva vinha contar-lhe que o pai se voluntariou nesse dia, estava de folga, e que era o homem que seguia à frente da coluna com o seu cão de guerra, que não teve tempo para cheirar o inimigo que o matou com um tiro nas costas, à entrada de uma pequena clareira com capim. 
Tinha feito 22 anos dias antes. 
“Durante todo o tempo, o seu cão esteve sempre ao lado, sentado nas patas traseiras, recusando afastar-se do tratador, e sempre a uivar”, contou o major José Calheiros na cerimónia fúnebre de 6 de Dezembro. 
Durante todos estes anos, tinha estado enterrado num cemitério de Luanda, com o seu nome perfeitamente identificado.

Ter o pai num sítio onde pode Ernestina ir visitá-lo e saber como foi a sua morte, limpa de rumores, ajudaram a produzir dentro dela uma “paz incrível”, uma mistura “de alívio e alegria”. 
No funeral, “foi como se ele me estivesse a dizer ‘obrigado, estou aqui’”. 
Na lápide em granito, que ainda está por fazer, vai colocar as suas datas de nascimento, de morte e de “regresso a casa”.

“Mãe, o pai voltou para casa.” 
A filha disse-lhe a frase ao ouvido, como se sussurrada a essa proximidade a mensagem tivesse mais possibilidade de lhe chegar ao cérebro. 
Claro que a mãe não reagiu, só abre e fecha os olhos, está em coma há três anos, mas era a pessoa para quem aquela mensagem, aquele funeral fora de tempo, mais teria tido importância. 
Ficou viúva aos 22 anos, sozinha a criar uma menina de dois anos que era Ernestina. 
Foi, por isso, a primeira pessoa a quem foi contar, mesmo sabendo que “a mãe já não está cá”.


O esqueleto E

Mas o problema dos militares mortos que ficaram em África não teve só que ver com os custos. 
Muitos militares não foram transladados para Portugal porque permanecem até hoje em lugar incerto (200) ou continuam desaparecidos (267), informa o presidente da Liga dos Combatentes, o general Chito Rodrigues. 
Estes casos incluem, por exemplo, militares enterrados em situação de combate no local da morte, afogamentos, corpos enterrados em cemitérios improvisados das próprias unidades, que se encontram dispersos pelos territórios em lugares que hoje são mato e capim.

O irmão de Conceição Vitoriano Maia foi, até dada altura, um desses corpos sem paradeiro. Morto a 23 de Maio de 1973 (quando o Estado já custeava a transladação), a notícia que lhes chegou a casa já não veio por telegrama. 
“Não era normal ter a GNR à porta, eram dois, vinham a pé…” 
Tinha dez anos, não ouviu o que disseram à mãe. 
“Não precisei.” 
Quando saíram, a mãe chorava. 
O filho tinha “desaparecido em combate”. 
É pior do que “morto em combate”, afirma. 
Embora a mãe sentisse durante longos anos a necessidade de repetir, mesmo a desconhecidos, “eu tinha um filho, morreu na Guiné”, manteve durante muitos anos a esperança no regresso do filho: “Ele ia chegar um dia. 
Sempre que batiam à porta fora de horas…” 
Mas era um problema sem solução e os anos passaram.

Até que um sargento pára-quedista, Manuel Rebocho, descobriu em 2006 que tinha havido três soldados pára-quedistas que tinham ficado enterrados no mato em Guidaje (Guiné-Bissau) e que nunca ninguém tinha voltado para ir buscar, embora a divisa dos pára-quedistas fosse precisamente “Ninguém fica para trás”. 
Inconformado, começou a contactar entidades e famílias. 
Conceição Vitoriano Maia já estava pacificada em relação ao assunto do irmão, não havia corpo mas a sua morte era incontroversa. 
O sargento veio informá-la de que existia um mapa da altura desenhado pelos militares da unidade com a localização das sepulturas. 
E Conceição sentiu que, sabendo-se onde estava, não podia deixá-lo lá. 
Começou tudo em 2006, as cartas, os requerimentos, os pedidos de reuniões, à qual se juntou a Associação de Pára-Quedistas.

Conceição Vitoriano Maia diz que, no início, o que encontrou junto de entidades oficiais militares foi obstáculos. 
Respondiam-lhe que era um assunto encerrado, que era demasiado tarde. 
Face às resistências, decidiu então que, em vez de ser uma operação militar, organizaria ela própria uma missão civil para trazer o corpo do irmão e dos dois outros pára-quedistas que estavam no mesmo local. 
Ela era arqueóloga, mais habituada a escavações do período romano, é certo, mas estava disposta a fazer este trabalho.

O presidente da Liga dos Combatentes afirma que uma missão deste tipo estava a ser planeada há dois anos e que a liga acabou por aceitar incorporar na equipa da primeira missão a União de Pára-Quedistas.

Certo é que a ida à Guiné decorreu em Março de 2008 e acabou por ser o início da chamada Operação Conservação de Memórias, levada a cabo pela liga com o objectivo de “dignificar” os restos mortais de militares dispersos por vários locais e transferi-los para cemitérios centrais. 
O objectivo nunca foi assegurar a transladação para Portugal mas, localizados os militares, podiam ajudar as famílias que o quisessem fazer, explica Chito Rodrigues. 
A Liga dos Combatentes tem um protocolo com a TAP que assegura gratuitamente às famílias a viagem do cemitério da capital do país africano para Lisboa, mas as restantes despesas são a cargo da família, e ainda podem ser bastantes.

“Nós não percebemos porque é que essas pessoas não foram todas trazidas”, afirma o responsável, mas lembra que “a liga não substitui o Estado, actuamos onde o Estado não actua, como complemento, nos mortos e nos vivos”.

Conceição Vitoriano Maia lembra esses dias da missão na Guiné como de grande intensidade emocional. 
À noite, depois dos dias em escavações, conseguia dormir só com ajuda de calmantes. “Como é que alguém consegue ser duas: a arqueóloga e a irmã? 
Foi muito difícil de gerir.” 
Tinha como função destapar a área onde supostamente tinham sido enterrados vários militares, um deles o seu irmão, para depois deixar as colegas antropólogas trabalharem na identificação das ossadas. 
Como arqueóloga, está mais do que habituada a destapar esqueletos, são objectos arqueológicos como quaisquer outros, “como pedras”, mas aqui sabia que num daqueles rectângulos de terra mais clara jazia o irmão. 
Encontraram muitos objectos por aqueles dias, um cachimbo, garrafas de cerveja, pentes, pulseiras, anéis, objectos religiosos. 
E um pequenino coração de pedra cor-de-rosa para usar num fio. 
Pertencia ao esqueleto E, a letra correspondente à sua ordem de aparecimento.

O esqueleto E era António Vitoriano, morto aos 21 anos, o seu irmão. 
O pequeno pendente pertencia-lhe mas nem ela nem a mãe lhe conheciam o objecto. 
Não foi por causa dele que o identificaram. 
Cada ossada é uma história. 
A de António Vitoriano estava na clavícula. 
Quando o irmão tinha oito anos tinha caído de bicicleta e partido esse osso e lá estava ele, remendado. 
“Nem sei como é que fui capaz emocionalmente. 
Foi muito pesado.”

A Operação Conservação de Memórias haveria de ir mais quatro vezes à Guiné e sete a Moçambique. 
Em Angola, vários problemas burocráticos impediram, até agora, a realização de uma operação, refere Chito Rodrigues. 
Recuperaram 43 corpos na Guiné e outros 73 corpos em Moçambique, que estão em dois ossários, um em Bissau e outro em Nampula. 
Desde 2008, apenas 13 famílias decidiram pagar pela vinda dos corpos: nove da Guiné, dois de Moçambique e dois de Angola, constata o responsável da Liga dos Combatentes.

Chito Rodrigues diz que há várias razões para terem sido tão poucas famílias a pedir a transladação. 
Uma delas podem ser os custos envolvidos, depois, quase 99% dos militares não tinham filhos, os familiares que ficam são irmãos, sobrinhos ou familiares mais distantes e, claro, há o tempo, já passaram 40, 50 anos sobre estas mortes.

A seguir ao funeral do irmão, a mãe de Conceição Vitoriano Maia, que tinha parado de falar do filho, voltou a falar dele uns tempos e depois calou-se. 
“Ficou guardadinho lá na gaveta.” 
Finalmente arrumado.

Para Conceição Vitoriano, “há imensas famílias com isso por resolver, a prova é essa senhora”. 
Fala de Ernestina Silva, cujo caso conheceu pela televisão.
















“Obrigação moral do Estado”

O historiador Miguel Bandeira Jerónimo, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, diz que esta recente transladação de um pai “ajuda-nos a perceber o que foi o império colonial português a perceber o que foi a natureza do regime, escassez de informação, o desrespeito que o regime tinha pela vida humana”. 
“São legados que não terminaram de todo.” 
“Há um ser humano, há uma família, há uma filha que não conheceu o pai.”

“A transladação é uma questão do foro privado, mas o Estado devia assegurá-las, se as famílias o desejarem. 
Devia ter sido feito pelo regime que conduziu a esta situação, mas esta, entre as muitas coisas que a democracia portuguesa tem para fazer, é uma obrigação moral do Estado democrático em relação ao seu passado.” 
“O grande problema é enterrar esta questão” e deixar que seja enredada “em discursos nacionalistas”.

“Estes são retornos por fazer. 
Há uma família que tem o direito a este reencontro.” 
“Foi uma guerra de classes, por que é que deve continuar a assentar em desigualdade social?” 
A transladação do pai de Ernestina de Angola custou 7500 euros, a filha avançou com 2500, o restante foi angariado pelos pára-quedistas. 
O historiador chama a estes casos “os lutos inacabados do império”.

“Eu revi-me na pele da Tina. 
Tenho muito orgulho de ela ter conseguido.” 
Otília Gonçalves, 54 anos, conheceu pela Internet a filha que trouxe o pai de Angola, foi de propósito de Braga a Lobão da Beira para o funeral. 
Anda há cerca de dez anos a tentar trazer “o mano” de Angola. 
O irmão, o mais velho de 11 filhos, morreu no início da guerra, a 15 de Outubro de 1961, junto a uma fazenda chamada “Tentativa”. 
Embora nunca o tenha conhecido sem ser de foto, a presença da sua ausência marcou-lhe a infância na aldeia de Ponte de São Vicente, distrito de Braga. 
“Eu, pequenina, ia dar com a minha mãe a chorar sentada no chão, atrás do milho. 
‘Sai daqui’”, ordenava à filha. 
Não queria que a sua dor fosse vista. 
Foi assim durante anos. 
No Verão, na altura de arejarem as roupas, do fundo de uma arca de madeira saía também o livro da primária “do mano”. 
É a única dos irmãos que não desiste. 
“Os meus irmãos acham que já não há nada para trazer.” 
Para Otília, há algo inacabado. 
Só receberam um telegrama a dizer que tinha morrido de acidente, perto de Nambuangongo, “muito simples e frio, ponto final. 
Se quisessem o filho, tinham de pagar. 
Era impossível. 
Tinham de vender a casa e as terras, claro que não dava”. 
Chamava-se Aquilino da Silva Gonçalves, era segundo cabo do Exército, ia fazer 21 anos.

Escreveu cartas e emails ao Presidente da República, ao primeiro-ministro, “a todos os órgãos”. 
“‘Acusamos a recepção, com os melhores cumprimentos.’ 
Mais nada. 
Tenho tudo arquivado.” 
“Quero trazer o meu irmão, quero que os meus pais descansem.” 
“Há muita gente que já não tem família mas há muita gente que ainda os quer trazer. 
Eu preciso.”

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

A guerra invisível de Manuel

GUERRA COLONIAL
Camilo Soldado
18 de Março de 2018, 8:53 

























Nasceu em Moçambique em 1949, foi a Tancos tirar o curso de pára-quedismo e voltou para combater do lado português. 
Com o fim do conflito foi preso, libertado e regressou a Portugal antes da independência. 
Agora pediu a reforma e o Exército português não reconhece parte do tempo de combate. 
O caso está em tribunal.

Base de Tancos, 18 de Junho de 1975. 
Manuel apresenta-se no Regimento de Caçadores Pára-quedistas, acabado de regressar da cidade da Beira, Moçambique, de onde era natural. 
Para trás deixava o nascimento de uma nação e tudo o que tinha até então: família, emprego, casa e carro. 
A 25 de Junho, exactamente uma semana depois, Samora Machel declarava a “independência total e completa” da República Popular de Moçambique. 
Para Manuel, ficar não era opção.

Durante os últimos anos de guerra, o homem tinha integrado o Grupo Especial Pára-quedista (GEP), uma força portuguesa instruída essencialmente por oficiais brancos e composta maioritariamente por soldados negros, naturais da então província ultramarina de Moçambique. 
Manuel, natural da Beira mas com o curso de pára-quedismo feito na metrópole, era um dos instrutores.

Depois do retorno a Portugal a vida continuou. 
Foi militar até 1983, estudou Medicina e começou a exercer no início da década de 1990. 
O ano de 2014 trouxe-lhe a doença que o obrigou a tratar da reforma. 
Procurou obter a contagem do tempo de serviço militar. 
De 1969 a 1972 estava tudo na folha de matrícula. 
De 1975 a 1983 também. 
No intervalo, o seu percurso no GEP era invisível.

Há testemunhas que atestam que esteve lá, pelo menos entre 1972 e 1974. 
Há também documentos que traçam parte da sua trajectória entre esses anos. 
Mas o Exército não lhe reconhece tempo de serviço. 
Menciona que não há registos que comprovem as datas exactas de inclusão e saída do GEP e argumenta que esta era uma força irregular ou de carácter paramilitar. 
Manuel, que quer evitar exposição da sua vida pessoal e por isso prefere que não seja publicado o seu nome completo, avançou para tribunal.

A distância, a guerra e a passagem do tempo não o tornaram num homem áspero. 
É caloroso e por vezes faz uso de uma amena ironia no trato. 
Quando conta as suas memórias torna-se mais austero e adopta uma postura de narrador assertivo. 
“Eu não digo mentiras”, faz questão de repetir tanto no encontro que teve com o P2 no início do ano, como nos vários telefonemas que lhe sucederam.

Beira, ir e voltar

O homem que nasceu na Beira, em 1949, quando esta ainda era território colonial, explica que veio receber a instrução a Tancos, em 1969, de livre vontade. 
“Ninguém obrigou ninguém.” 
Era voluntário, como os restantes pára-quedistas e assume-o. 
“Queria servir a pátria.” 
Alistou-se com 19 anos, a 27 de Maio, e fez depois a recruta e o curso de pára-quedismo.

Esteve perto de ir para a Guiné-Bissau, mas a morte do pai no Verão de 1969 trocou-lhe as voltas. 
“Como não fui ao funeral, falei com o comandante para ir ver a família. 
Ele atendeu e eu fui desmobilizado da Guiné para Moçambique.” 
Reproduzida a partir de microfilme, a sua folha de matrícula mostra que, concluído o curso, desembarcou na então cidade de Lourenço Marques a 16 de Abril de 1970, sendo de seguida incorporado no Batalhão de Caçadores Pára-quedistas 31 (BCP31), sediado mais a Norte, precisamente na Beira.

Coincidiu com a preparação da operação Nó Górdio, lançada em Julho desse ano pelo comandante-chefe das Forças Armadas em Moçambique, o general Kaúlza de Arriaga. 
A estratégia passava por “acabar com a guerra atacando os pontos vitais do 'inimigo'”, tendo sido “a maior operação jamais levada a cabo” no país, escreve Amélia Neves de Souto no livro Caetano e o ocaso do 'Império' (Edições Afrontamento, 2007).

Os resultados ficaram “muito longe” dos publicitados pelas forças portuguesas, refere a professora universitária, mas a operação “foi de facto um verdadeiro pesadelo para os guerrilheiros e populações, com bombardeamentos constantes, com lançamento de napalm e de desfolhantes”. 
A principal resposta da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) foi em Tete, onde Manuel combateu e onde estava a ser construída a barragem de Cahora Bassa.

Algumas das recordações estão esbatidas. 
Manuel não consegue apontar uma data exacta da transição do batalhão de caçadores para o GEP, nem indicar com certeza o mês em que saiu. 
Fê-lo porque “ia ganhar mais e era uma promoção na carreira”. 
Passou a ser instrutor, mas acompanhava também os homens que formava em combate.

15 de Setembro de 1972. 
A data figura manuscrita na sua folha de matrícula e indica a passagem à disponibilidade, ou seja, o fim da comissão de serviço no batalhão. 
A confirmar-se, a data indica que deixou as Forças Armadas nesse dia. 
Manuel não se recorda dos contornos. 
Os autos mostram que também não conseguiu ser mais específico perante o Exército. 
Ao longo da conversa, quando lhe falha a memória, inclina ligeiramente a cabeça para a frente e bate de leve com o indicador na fronte, num esforço por recuperar o que não desponta instantaneamente.

Mas Cesário Silva e Costa esteve lá e lembra-se. 
Chegou ao Centro de Instrução dos Grupos Especiais (CIGE) no princípio de Março de 1972, exerceu funções como capitão e saiu no princípio de Agosto de 1974. 
Recorda-se “perfeitamente” que, quando chegou ao Dondo, a terra a cerca de 30 quilómetros da Beira onde estava instalado o CIGE, Manuel já lá estava. 
José Augusto Serra Pinto, comandante que chegou ao CIGE no mesmo ano, atesta esta versão.

O comandante do BCP31 era um homem chamado Sigfredo Ventura da Costa Campos. 
O mesmo coronel foi encarregue de formar os GEP e foi a seu convite que Manuel diz ter integrado esta força. 
“Ele tinha de escolher os militares que achava que poderiam dar contributo na formação dos naturais da terra”, elabora. 
Costa Campos morreu em 2008.

António Picão de Abreu, então capitão, foi outro dos fundadores dos GEP e também situa Manuel no princípio das forças especiais. 
Hoje está com 77 anos e “já lá vão” outros 40. 
Não consegue apontar para 1972 ou 1973 com força de certeza. 
Contudo, refere que se veio embora em Setembro de 1974 e que o militar ainda por lá estava.

O tempo não foi contado

A reconstituição dos documentos de matrícula de Manuel começou por um requerimento a 14 de Julho de 2016 dirigido ao Chefe do Estado Maior do Exército, para que fosse reconhecido esse período entre 1972 e 1975. 
Em Setembro recebeu a resposta: indeferido. 
A justificação da Direcção de Administração de Recursos Humanos (DARH) do Exército? “O tempo de serviço requerido foi prestado ao serviço de forças não regulares do tipo paramilitares” (sic).

Depois de uma intervenção da advogada de Manuel, Ana Pereira de Sousa, o Exército comunicou em Novembro do mesmo ano que a matéria se encontrava “a ser analisada” e que se deveria considerar sem efeito a resposta de Setembro. 
O documento sublinhava no entanto que, na folha de matrícula do militar, estava apenas inscrita a passagem à disponibilidade em 1972 e a reintegração em 1975.

O processo de reconstituição ficou então a cargo do Regimento de Cavalaria n.º 6 do Exército Português, aquartelado em Braga. 
Este relatório concluiu que “as provas testemunhais e documentais reunidas confirmam que o requerente efectivamente pertenceu” aos GEP, embora não tenha sido possível determinar a “data exacta” de incorporação nem da passagem à disponibilidade. 
“Pode afirmar-se que o requerente, no ano de 1972, já fazia parte” daquela força. 
O relator considerava ainda ser “possível” que Manuel tivesse ficado no GEP até 1975. 
A 12 de Julho de 2017, o oficial instrutor dava por encerrado o processo de reconstituição. Mas haveria mais.

De volta à DARH, este departamento conclui em Setembro de 2017 que “não há qualquer referência nos seus documentos de matrícula nem outro documento que ateste a colocação no CIGE, nem antes nem após a sua passagem à disponibilidade em 15 de Setembro de 1972”. 
Acrescenta ainda que “os elementos constantes” são “insuficientes de forma a averbar a contagem de tempo requerida”. 
Esses elementos incluem os testemunhos que atestam que Manuel cumpriu serviço naquelas forças especiais e ordens de serviço do CIGE, nas quais surge o seu nome. Entendendo que é “fundamental determinar e apurar as datas de desvinculação e vinculação”, o texto da DARH admite ainda a possibilidade de colocação no CIGE. 
No entanto, este tempo “terá sido [cumprido] como contratado, a título particular e por interesse pessoal”. 
O tempo não foi contado.

No processo que decorre no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, o representante legal do Exército, Luís Lourenço, sublinha que os elementos “são manifestamente insuficientes para poderem justificar a pretendida alteração da contagem do tempo de serviço”. 
Alega ainda que os GEP eram “forças para-militares e irregulares, não integrando a estrutura orgânica das Forças Armadas Portuguesas”.

Questão de classificação

Em Abril de 1971, Kaúlza designa Costa Campos para o comando-geral dos GE e GEP, forças que seriam enquadradas maioritariamente por militares da metrópole e compostas por locais africanos, embora nas duas situações houvesse excepções. 
Uma nota de execução permanente de Outubro do mesmo ano tem como título: “Normas reguladoras da situação militar dos elementos das tropas irregulares designadas por GE”, que se aplicava também aos GEP.

Para Carlos Matos Gomes, que escreveu um capítulo sobre a africanização da guerra no livro As guerras de libertação e os sonhos coloniais (Almedina, 2014) uma das ideias que se deve reter é que “a guerra colonial  não foi feita pelas FA, mas pelo Estado português”, e os GEP “eram combatentes pelo Governo português”. 
Carlos Matos Gomes não tem qualquer dúvida: os GEP “não são forças irregulares”, mas “forças auxiliares”.

O general Picão de Abreu, no CIGE desde a fundação até Setembro de 1974, também estabelece uma diferença entre tropas “especiais” e “irregulares”. 
Diz que esse argumento utilizado pelo Exército para não reconhecer o tempo é “uma desconsideração e um desrespeito”. 
Sobe a voz e indigna-se: “Nós recrutávamos, instruíamos, enquadrávamos, alimentávamos, pagávamos, fardávamos, armávamos, equipávamos, comandávamos e no fim ainda juravam bandeira com a presença do general comandante chefe. 
Isto é tropa irregular, pá?”

Por norma, os naturais moçambicanos juntavam-se ao lado português porque as condições ali eram outras. 
Havia alimentação e hipótese de sustentarem as próprias famílias. 
Não era um acto político. 
“Era uma forma de melhorar a sua situação”, resume Manuel. 
A participação dos GE e GEP alcançou os 3420 homens, sendo formados 12 grupos dos GEP e 84 dos GE. 
A participação das “populações das Províncias na luta activa contra a guerrilha”, escreve Amélia Neves de Souto, favorecia a “propaganda portuguesa”.

Por seu lado, Carlos Matos Gomes refere que a “africanização da guerra” tinha vários propósitos. 
A sua génese encontra-se nas “dificuldades financeiras de Portugal em suportar as despesas da guerra”. 
As forças locais não necessitavam de ser transportadas para o terreno e ajudavam assim a suprir o “défice de recrutamento metropolitano”. 
Tinha a vantagem de aumentar o número de combatentes, numa força adaptada às condições locais e por isso eram “operacionalmente mais eficazes”. 
Há também o factor de as baixas destes efectivos “não causarem perturbação nas metrópoles”.

As botas, a licença e o louvor

O dia-a-dia de uma companhia normal é registado em ordens de serviço (OS). 
O caso do CIGE não era diferente. 
Era tudo anotado, desde a concessão de simples licenças a actos disciplinares, como a condenação de uma soldado a dez dias de prisão por “ter agredido um civil sem motivo justificado” em Janeiro de 1974, ou a punição de outro militar com 15 dias de prisão em Novembro de 1974 por se ter apresentado no quartel “com fortes indícios de embriaguês, falta em que é reincidente”. 
São estes registos também que não deixam margens para dúvidas sobre Manuel e o colocam no Dondo.

O seu nome aparece entre muitos outros. 
É graças às ordens de serviço que há provas documentais que Manuel foi graduado sargento miliciano a 31 de Março de 1973 e que um mês e uma semana depois constava na lista de oito instrutores do 11.º Curso de Pára-quedismo; sabemos também que a 15 de Março foi autorizado a não usar botas por oito dias e que a 26 de Maio do mesmo ano entraria em licença por 30 dias.

No início do Verão, recebe um louvor. 
“Porque prestando serviço há cerca de dois anos nos GE e GEP [no documento original, a palavra “nos” aparece sobreposta à sigla “GE”], quer no CIGE quer em zonas operacionais, mostrou possuir excelentes qualidades de trabalho e vontade de bem servir”. 
O texto assinado por Costa Campos data de 6 de Julho de 1973. 
O responsável descreve Manuel como um “militar correcto, disciplinado e disciplinador” que conseguiu “granjear a confiança e estima dos seus superiores e subordinados tornando-se credor de público louvor e digno de ser apontado como exemplo a seguir”.

No entanto, uma das peças centrais no processo de Manuel é a falta de registos que comprovem as datas específicas de entrada e saída do GEP. 
O que aconteceu aos documentos? 
Não há uma resposta definitiva e há várias teorias. 
A sua folha de matrícula apresenta a seguinte inscrição: “(OS nº 9/71 CIGE) e (OS 107/72 BCP31)”. 
O que significa que o seu nome deve ser mencionado numa das primeiras ordens de serviço do Centro de Instrução do Dondo do ano de 1971. 
A OS não está incluída no processo do TAF de Braga.

Contactado pelo P2, o Exército informa que não aborda detalhes específicos de um processo que ainda decorre, comentando apenas os procedimentos normais de contagem de tempo. 
Um processo que por norma é “moroso”, introduz a resposta ao pedido de esclarecimento enviada por e-mail. 
“O período em apreço encerra em si uma instabilidade própria das operações militares de guerra, em que, por vezes, a documentação é capturada, destruída ou extraviada na desmobilização dos Teatros de Operações.”

Acresce o facto de ser “comum” os militares, a contas com as suas missões, não se terem preocupado em “confirmar, com regularidade, se os seus processos individuais estavam completos e atualizados”. 
Isto faz com que “as omissões só fossem detetadas muitos anos depois”, e sejam assim “muito mais difíceis de esclarecer”.

À Liga dos Combatentes não costumam chegar casos desta natureza. 
O secretário-geral da Liga, coronel Lucas Hilário, explica mesmo que uma situação como a de Manuel é rara, para não dizer única. 
”Deve haver um erro grave” em termos administrativos ou “documentos fora do processo”, avalia.   

 Falhas de registo

Cesário Silva e Costa estranha que não conste o tempo ao serviço do GEP. 
Ele próprio, que integrou essa força em funções de comando, tem essa inscrição nos seus documentos. 
Além de instrutor nos cursos, passou também pela “parte burocrática” do CIGE. 
“Havia registos nas ordens de serviço”. 
Depois, “o pessoal que estava nas funções do registo, pegava nas OS e registava nas folhas de matrícula”, descreve. 
Não foi assim com Manuel.

Diniz Manso fez parte dos Grupos Especiais e foi uma das testemunhas do processo de averiguações instaurado pelo Exército. 
Estava em Nampula, no quartel-general, quando os ecos da revolução chegaram a Moçambique. 
Narrou ao Exército e replicou ao P2 que foi lá que viu imensa documentação destruída pelo fogo “por motivos de segurança”. 
“Aquilo vinha em unimogs [um veículo militar todo-o-terreno] e vi dossiers inteirinhos a entrarem na vala” que tinhas sido aberta, descreve. 
A combustão era alimentada a jerricans “para que não viesse a ficar nada para a Frelimo”. Por isso não o surpreende que um processo semelhante tenha acontecido com parte dos registos do GEP, aventa.

O P2 chegou à fala com Luiz Canavarro, que integrou o GEP em 1974, através de Diniz Manso. 
O antigo GE contava uma história que poderia ilustrar o que aconteceu a estes homens na época da transição de poder de Lisboa para Maputo. 
Já lá vamos. 
Antes disso, em relação ao tempo de serviço, Canavarro explica que lhe contabilizaram o período que passou no GEP para a aposentação, isto apesar de não haver qualquer registo no seu processo individual, garante. 
Apenas data de partida e de regresso de Moçambique. 
“Não tem promoções, condecorações, punições, não tem nada.” 
E teve problemas ao pedir a reforma? 
“Não. 
Tinha uma pessoa no serviço do Exército que facilitou. 
Foi meu camarada, esteve lá comigo. 
Não discuti a contagem de tempo porque estava razoavelmente exacta. 
Não sei como a obtiveram porque os meus documentos desapareceram”.

O Exército lembra que, de cada vez que é contactado para fazer a contagem de serviço, tem de “avaliar todo o percurso de vida militar do cidadão”, analisando “caso a caso e documento a documento”. 
Este trabalho “só tem carácter oficial” para as instituições que asseguram reformas “se for sustentado em documentos oficiais que comprovem o que é alegado/requerido pelo cidadão”. 
Assim, sempre que a ausência de documentos não o permite, “o indeferimento é transmitido ao cidadão, que terá a prorrogativa (sic) de recorrer às entidades judiciais”.

Assim sucedeu. 
A advogada do militar queixoso, apesar de não deixar a palavra escrita, sugere que este caso é um exemplo de discriminação. 
Os seis ex-militares com quem o P2 falou que, tendo feito a instrução em Portugal, cumpriram serviço nos GE ou nos GEP, viram reconhecido esse tempo de serviço na reforma. 
Os seis são brancos e nenhum deles conhecia um caso como o do camarada, em que o tempo não tenha sido contado. 
A não ser o de Manuel, que é negro.

Neste ponto, o Exército escreve que “não se pronuncia sobre alegadas insinuações”, mas descarta qualquer prática do género, diz-se uma instituição formada por “cidadãos nacionais, de qualquer género, raça e religião”.

Manuel não é tão subtil. 
Questionado sobre se conhece militares brancos que tenham integrado o GEP ou GE, tendo feito a instrução em Portugal e a quem tenha sido reconhecido esse tempo de serviço, a resposta é sintética: “Todos. 
Não há nenhum a quem não tenham contado. 
A mim não consideraram. 
Porquê? 
Porque sou preto. 
É de caras.

  Quem lá ficou

A história mostra que o processo de descolonização esteve longe de ser exemplar. 
Sobre o que sucedeu aos homens do GEP, o coronel Serra Pinto, hoje com 81 anos, percorre o campo das possibilidades. 
Voltou a Portugal no final de 1974 e não apanhou a recta final da independência moçambicana. 
“Acredito que tenha havido problemas”, mas está convicto de que “não houve atitudes de retaliação” generalizada.

Perspectiva diferente tem Luiz Canavarro, hoje com 69 anos. 
Esteve no CIGE entre Janeiro e Março de 1974. 
Foi depois foi destacado para o Sagal, na província de Cabo Delgado, no Norte do país. “Foi a experiência mais endurecedora da minha vida, estar a comandar 420 homens aos 24 anos.” 
Nessa missão, teria de tomar uma decisão. 
“Um dia, talvez em Julho de 1974, recebi uma ordem via mensagem. 
Mandava-me entregar todos os soldados GEP [de origem africana] desarmados num aquartelamento da Frelimo em Porto Amélia”, hoje a cidade de Pemba. 
“Não custa muito imaginar o que lhes ia acontecer”, acrescenta.

Canavarro não saiu da sua base. 
“Limitei-me a expor-lhes [aos GEP] a situação e dei-lhes os meios para passarem para o Malawi. 
E eles fizera-no.” 
Está convencido que, “se tivessem sido entregues desarmados, eram imediatamente passados a fio de espada”. 
Recorda ainda que, três anos mais tarde, recebeu uma “tristíssima carta de um deles, a dizer o que tinha acontecido. 
Estavam na miséria e impedidos de voltar. 
Não sei mais o que lhes aconteceu.”

Carlos Matos Gomes atesta ao P2 que existiu violência. 
“É uma consequência recorrente. 
Sempre que aconteceram as independências, aconteceram estes casos”, refere, lembrando que os vencedores muitas vezes consideram os vencidos como “traidores aos grandes princípios da libertação”. 
Em Moçambique, o contingente africano foi desmobilizado e “muitos regressaram às suas terras, foram perseguidos e outros foram sujeitos a processos de reeducação”.

Apesar disso, no livro refere que os níveis de violência em Moçambique não atingiram os da Guiné. 
Em última análise, a africanização em vários territórios “criou condições para que milhares de homens que serviram as forças portuguesas terem por isso sofrido torturas e mortes com sofrimentos horrorosos”.

 Verão que é sempre Verão

Depois do serviço no GEP, Manuel teve um emprego por pouco tempo em Moçambique. Em que mês? 
Já não se recorda. 
E o ciclo das estações do ano que por vezes ajuda a orientar a memória, não serve aqui de grande auxílio. 
“Aquele Verão é sempre Verão”, descreve. 
Sabe que trabalhou um mês – “se tanto” – na Spanos Comercial, na Beira, uma livraria que vendia também equipamento de escritório. 
Foi em 1975 e desempenhava a função de chefe de secretaria. 
Um dia, enquanto estava ao telefone a vender uma máquina de contabilidade ao Banco Nacional Ultramarino (BNU), entram no estabelecimento três indivíduos armados com kalashnikovs.
 “Sabiam quem eu era”. 
E reproduz:

– Desliga essa merda.

– Estou a vender aqui uma máquina.

– Desliga essa merda.

“Foi mesmo assim, a expressão do chefe. 
Pedi desculpas ao director do BNU.”  

– Vou ter de desligar. 
Estão aqui uns senhores da Frelimo.

Desligou. 
Foi o último dia de trabalho na Spanos. 
Apesar de alguns episódios e datas estarem já esbatidos, há outros acontecimentos que descreve com vividez e pormenor. 
Conta que o meteram numa carrinha de caixa aberta, com dois militares moçambicanos atrás a ladeá-lo e um comandante na parte da frente, a acompanhar o motorista.

“Passaram por todos os locais”, numa ronda pela cidade para exibir a captura, recorda. 
Em vários dos pontos mais movimentados repetiam para a população: "Está a ver? Reaccionário não é só branco. 
Este é preto e também é reaccionário.” 
Ficou detido na zona Matacuane e não sofreu maus tratos físicos, mas recorda-se que “a alimentação era muito deficiente”. 
Ao Exército disse que esteve três dias em cativeiro. 
Foi a julgamento no Hotel D. Luís, em Macuti, também na cidade da Beira. 
Houve apenas uma sessão. “Ouviram-me, soltaram-me e vim-me embora.”

Após a guerra tinha feito planos para permanecer na Beira. 
“Tinha comprado apartamento, um carro... 
Depois de preso, só se fosse estúpido é que continuava lá.” 
Libertado, voltou a contactar o comando do BCP31 para vir para Portugal. 
Recebeu guia de marcha e apanhou um avião da TAP no dia seguinte. 
“Quando saí, não me despedi de ninguém. 
Nem da minha mãe nem dos meus irmãos.” 
Pouco ou nada tem desse tempo. 
Fotografias, objectos ou recordações. 
Deixou tudo. 
O carro, um Ford Escort 1300, ficou em frente à casa. 
Também não sabe o que aconteceu ao apartamento.

Em Portugal, reintegrou o Exército em Junho de 1975. 
Fez toda a vida no país, é cidadão português. 
Foi voltando a Moçambique, mas só obteve o passaporte do país em 2010. 
De hoje a três meses fará 43 anos que chegou.

Sobre a guerra e o que a alimentou, o general Picão de Abreu diz “nunca ter tido dúvidas” de que Moçambique devia ser independente. 
“Nunca. 
Nem quando estava lá a combater.” 
Outra coisa é o reconhecimento dos homens que lá estiveram com ele. 
“Dói-me o coração, não consigo entender”, diz. 
“Andou lá a arriscar o coiro, do nosso lado. 
E agora? 
Por causa da merda de uns tostões...”

No fim da nossa primeira conversa, Manuel sugere um título para este texto. 
“Injustiça das Forças Armadas”, dita. 
É assim que se sente, injustiçado e discriminado. 
O mais provável é que o título seja outro, explico. 
Quando a pergunta é sobre a forma como encara o processo, faz uma pausa e ensaia um trejeito irónico antes de responder, mas o tom sai-lhe seco: “Querem que eu morra para não receber. 
Só isso. 
Fazem isto para eu morrer, para não poder receber aquilo a que tenho direito.” 
Todavia acrescenta: “Sei que vou ganhar.”