Maria José Oliveira
29 Outubro 2017
A maior empresa do império português nasceu há 100 anos em Angola.
Fomentou a segregação racial, ignorou abusos sexuais contra mulheres negras e manteve o trabalho forçado durante mais de meio século.
A ocupação
Distante de Luanda, escassamente habitado, inóspito e aparentemente desinteressante para o colonizador. Foi este o rescaldo transmitido a Lisboa em 1894, quando os portugueses se apoderaram do distrito da Lunda, no Nordeste de Angola.
Não admira, portanto, que o desinteresse tenha adiado durante alguns anos a demarcação de fronteiras. Foi preciso esperar por Paiva Couceiro, governador-geral de Angola entre 1907 e 1909, para que isso fosse feito. Porém, delimitadas as fronteiras, tudo regressou ao seu estado original – sem ocupações militares; sem colonos; quase sem comunicações com o resto da colónia; habitado por algumas tribos nativas.
Tudo se manteve inalterado até 1917, quando a Lunda galgou fronteiras e entrou nas esferas económicas e financeiras internacionais. O que mudara? A descoberta de jazidas de diamantes.
Uns anos antes, em 1912, tinham sido encontrados sete diamantes numa das margens do rio Chiumbe. A descoberta suscitou a curiosidade da Forminière (Société Forrestière et Minière du Congo), uma empresa de capitais belgas que, desde 1907, laborava nas jazidas encontradas no lado congolês da bacia hidrográfica do Cassai, na fronteira entre Angola e o então Congo Belga. A exploração mineral feita pela Forminière fazia crer na continuidade de jazidas na margem angolana, pelo que a companhia encorajou a criação, em 1912, de uma empresa de prospecção: a PEMA – Companhia de Pesquisas Mineiras de Angola.
Em pouco tempo, a primeira mina foi aberta e entrou em funcionamento, tendo o recrutamento de trabalhadores sido feito nos sobados locais, onde a resistência mantinha alguma robustez. Esta resistência era dirigida pelos Quiocos, que lutavam para travar a ocupação das suas terras, beneficiando da escassez de militares em Luchico. Confrontado com a desproporção de forças e a resiliência dos Quiocos, o Governo da metrópole ainda ponderou enviar tropas para a Lunda, mas a ideia não passou disso mesmo. A Diamang, contudo, não deixou de insistir junto de Lisboa para que a área de concessão (inicialmente com 20 mil quilómetros quadrados) fosse militarmente ocupada, uma vez que as prospecções e os trabalhadores exigiam vigilância. Mas teve de esperar alguns anos para que tal acontecesse.
Na verdade, teve de esperar por Bento Esteves Roma, um veterano da Primeira Guerra Mundial, ex-prisioneiro de guerra, que foi nomeado governador da Lunda em 1922 e que manteve aquelas funções até 1927. Através da violência, Roma subjugou alguns sobas, expulsou-os das suas terras e matou quem resistia. A ocupação militar varreu tudo, incluindo as guerras tribais (muitos membros das etnias beligerantes abandonaram a Lunda e rumaram para as minas no Leste de Angola; outros viriam a ser cultivadores de algodão na Baixa do Cassange, onde, em 1961, eclodiu uma revolta contra a cultura obrigatória imposta pela Cotonang). Pequenos núcleos de irredutíveis quiocos, porém, mantiveram-se no Nordeste, longe dos colonos, sobrevivendo até ao pós-guerra.
O fim da resistência na Lunda, alcançado através da violência decretada pelo governador, permitiu à Companhia avançar na sua consolidação. A região começou a transformar-se numa área exclusiva da empresa.
A sexta colónia africana
Foi a maior companhia do Terceiro Império Português e uma das cinco maiores produtoras de diamantes do mundo, dominando, nos anos 70, uma área de 52 mil quilómetros quadrados. A concessão confinava a Oeste e a Sul com o restante território da colónia, a Sudeste com a actual Zâmbia (então designada Rodésia do Norte) e a Norte e a Nordeste com a actual República Democrática do Congo (então Congo Belga).
Capitais portugueses (da firma Henry Burnay & Companhia, convertida em Banco Burnay em outubro de 1925, e do Banco Nacional Ultramarino), belgas (da Société Générale de Belgique e da Mutualité Coloniale), franceses (do Banque de L’Union Parisienne) e norte-americanos (do grupo Ryan-Guggenheim) entraram na constituição da Companhia, juntando-se, ao longo dos anos, a este conjunto original, mais accionistas. Lisboa acolheu a sede e abriram-se escritórios em Bruxelas, Londres e Nova Iorque.
Trabalhos nas lavarias móveis @Diamang Digital
O primeiro contrato que a Companhia celebrou com o Governo português prenunciava já que a Diamang viria a converter-se num “Estado dentro do Estado”, como lhe chamaria, muitos anos mais tarde, em 1955, o deputado Cancela de Abreu, durante uma sessão na Assembleia Nacional. O acordo foi firmado em 1921, numa altura em que Norton de Matos regressara à colónia, desta vez como alto-comissário (nova designação para governador-geral).
O contrato estipulou benesses inéditas na economia colonial: a Diamang detinha o exclusivo da prospecção de diamantes em 90 por cento do território angolano; estava dispensada de pagar taxas alfandegárias sobre a aquisição de mercadorias (alimentos ou têxteis), máquinas e equipamentos industriais; detinha o monopólio das actividades comerciais na zona concessionada; e foram-lhe atribuídas condições especiais para o recrutamento de mão-de-obra nativa.
No domínio do trabalho, Portugal quis garantir um “carácter nacional”, vertendo para o contrato a obrigatoriedade de a força laboral ser composta por 70 por cento de portugueses (a título excepcional e temporário, o director técnico das Explorações poderia ter origem estrangeira); e exigiu também que a Companhia respeitasse a lei vigente sobre o trabalho nativo, obedecendo às regras relativas à alimentação, vestuário, salário, educação e assistência médica. Em troca do manancial de privilégios, a Diamang dava anualmente ao Governo 40 por cento dos lucros da Companhia – valor que foi elevado para 50 por cento em contratos posteriores.
Refeitório dos trabalhadores da mina de Kataila @Diamang Digital
O contrato acelerou o crescimento da Companhia em diversas vertentes. No início dos anos 20 já existiam nove locais de mineração; e nos anos 30 a fixação de trabalhadores ganhou novos incentivos com a inauguração, no Dundo, cidade-centro administrativo da Diamang, da primeira Escola Oficial do Ensino Primário e de uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Eram evidentes os primeiros passos para a auto-suficiência. Tudo confluía nesse sentido. Por isso, nos anos 40 a Companhia possuía uma Secção de Pecuária, Serviços Administrativos, Serviços da Concessão, Serviços de Distribuição e Abastecimentos, Serviços de Informação e Diligências (criados para combater o tráfico ilegal de diamantes e vigiar os trabalhadores africanos), um Corpo de Polícia, um Laboratório Fotográfico, Serviços de Mão-de-Obra Indígena, o Serviço de Propaganda e Assistência à Mão-de-Obra Indígena (o SPAMOI era responsável por orientar os indígenas na produção agro-pecuária, higiene pessoal e doméstica e na construção de aldeamentos, por exemplo) e uma Secção de Transporte e Alfândega.
O “Estado dentro do Estado” fundava cidades, tinha um contingente policial próprio, abria estradas, construía barragens e centrais hidroeléctricas, possuía serviços de saúde e laboratórios de investigação, edificava escolas, tinha emissoras de rádio e um museu no Dundo.
A autonomia e o poder majestático da empresa permitia-lhe alhear-se de quaisquer oscilações políticas verificadas na colónia ou na metrópole. Segundo Nuno Porto, autor do livro “Modos de objectificação da dominação colonial: o caso do Museu do Dundo, 1940-1970”, isto mesmo estava inscrito nos diversos acordos firmados com o Governo local. E o colonizador não se opunha, pois a Companhia era publicitada externamente como “a face visível da colonização portuguesa na Lunda”, escreveu Porto.
O antropólogo, que coordena desde 2008 o Projecto Diamang Digital (um valioso espólio documental, fotográfico e fonográfico existente na Universidade de Coimbra), nota que o Acto Colonial, de 1930, não resultou em quaisquer perdas para a Companhia. Em 1937, foram renegociados os termos do primeiro contrato feito entre a Diamang e o Estado português (1921) e reproduzidas as benesses para a empresa e para Portugal, que ali recolhia avultadas receitas. A ocupação efectiva ganhou então nova nomenclatura – a Diamang chamava-lhe “ocupação científica”, traduzida pelo controlo demográfico e sanitário, pela investigação nas áreas da pecuária e agricultura, pesquisa etnográfica, biológica e pré-histórica e ainda pela publicação de uma revista científica internacional.
Na década de 50, quando o regime lançou os chamados planos de fomento em Angola e Moçambique, decidiu investir na exploração dos recursos minerais (petróleo e ferro). Mas nenhum investimento destronou a Diamang e o seu peso inédito nas exportações.
O recrutamento coercivo e o trabalho forçado
Os “ventos de mudança” do pós-guerra trouxeram a contestação internacional ao colonialismo português. Uma das primeiras medidas da Diamang para contornar a questão foi a sua abertura a capitais estrangeiros: além dos objectivos económicos, poderia assim “despertar o interesse dos aliados tradicionais pela manutenção do Império”, explicou o historiador António Telo em “Economia e Império no Portugal Contemporâneo”.
Contudo, esta decisão não evitou protestos no exterior. A independência de vários países africanos, nos anos 50, e a ratificação portuguesa de vários tratados sobre o trabalho, levaram a uma maior atenção sobre as empresas que estavam dependentes de trabalho forçado ou barato, como era o caso da Diamang. Todd Cleveland, investigador norte-americano que estudou o regime laboral da Companhia (“Rock Solid: African Laborers on the Diamond Mines of the Companhia de Diamantes de Angola (Diamang), 1917-1975”, 2008, Universidade do Minnesota), escreveu que a leitura de cartas e relatórios de funcionários superiores, datados dos anos 50, revela preocupações sobre as consequências económicas do eventual fim do trabalho forçado.
Não se tratavam de preocupações infundadas, mas não tiveram qualquer consequência. Isto porque todas as informações da Diamang para o exterior eram cuidadosamente elaboradas e as notícias sobre a empresa versavam, invariavelmente, sobre os impressionantes resultados económicos. Sob uma campânula invisível, como se fosse um território autónomo e independente, a Companhia manteve o recrutamento coercivo e o trabalho forçado até finais dos anos 60. Ninguém no regime ousou questionar a expecionalidade. Por isso, a empresa continuou a recorrer ao trabalho infantil, empregando menores sempre que escasseava a mão-de-obra adulta – menores que exerciam exactamente as mesmas tarefas que os mais velhos.
Trabalhos nas lavarias móveis @Diamang Digital
A preservação do trabalho forçado é tanto mais importante de referir porquanto a Companhia se transformou na empresa com o maior número de trabalhadores em Angola. Dados recolhidos por Nuno Porto em vários relatórios indicam que em 1919 ali trabalhavam 19 europeus (assim eram denominados os brancos, independentemente de serem norte-americanos, por exemplo) e 2300 africanos. Esta diferença abissal manteve-se até pelo menos 1967 (data final referida no estudo de Porto), presumindo-se que não existiram alterações até ao fim da presença portuguesa em Angola. Em 1937, data de renovação do contrato de 1921, existiam 156 europeus e 11 272 africanos (incluindo trabalhadores contratados, voluntários adultos e crianças).
Apesar do que ficara disposto nos contratos relativamente à mão-de-obra nacional, faltavam portugueses especializados, pelo que a empresa tinha de recorrer a belgas, sul-africanos, norte-americanos, russos e noruegueses. A contratação de estrangeiros tinha efeitos nas relações com os empregados portugueses, tratados pelos primeiros como “cidadãos de segunda”, segundo Cleveland. Sentiam-se, por isso, discriminados, o que, observa o investigador norte-americano, não deixa de ser curioso, tendo em conta a forma como os portugueses tratavam os africanos.
Refeitório dos trabalhadores da mina de Kataila @Diamang Digital
Em 1945 assistiu-se a um aumento de trabalhadores africanos (16 016) – situação que, segundo Nuno Porto, se deveu ao incremento atribuído aos trabalhos agrícolas, de urbanização, saneamento e prospecção em novas regiões. Em 1948 o número de empregados europeus continuava muito baixo (260), apesar das vantagens dadas pela empresa e que surgem inscritas no Relatório desse ano:
“Quase escusado será dizer que, tanto no relativo a vencimentos, gratificações e outros elementos de ordem material como a condições de feição espiritual e moral, procuramos incessantemente melhorar a situação dos nossos empregados, no intuito de os atrair e adaptar aos trabalhos de África e de os conservar ao nosso serviço por longos períodos, em sucessivos contratos. As facilidades que lhes damos para se fazerem acompanhar de pessoas de família elevaram o número de senhoras e crianças nas Explorações (…)”.
O crescimento de mão-de-obra africana, barata ou forçada, estava directamente associado à resistência da Companhia em mecanizar os seus processos de laboração. Nos primeiros anos da empresa, os diamantes eram recolhidos em riachos e terraços, sendo a prospecção feita manualmente. E assim foi durante muitos anos, tendo a expansão da Diamang sido feita à custa da capacidade física dos trabalhadores africanos e sem qualquer investimento em novos equipamentos. Esta relutância, escreve Cleveland, prolongou o sofrimento dos homens que continuavam a escavar e a remover cascalho como nos tempos iniciais da empresa. “As máquinas eram os homens”, disse um antigo trabalhador citado por Cleveland, e a produção sustentava-se, quase literalmente, nas costas dos africanos.
Desde os primeiros anos da Diamang que aconteciam roubos de diamantes. Por vezes, também de vestuário e alimentos. E a empresa nunca conseguiu estancar os roubos, sobretudo de diamantes. A acção era bastante arriscada, uma vez que os castigos previam a prisão, o exílio e, em alguns casos apontados por Cleveland, a pena de morte. Os africanos que conseguiam escapar ao apertado controlo da empresa, vendiam os diamantes a funcionários brancos, a alguns sobas ou aos “capitas” (os encarregados de obras de origem africana), que habitualmente tinham ligações com redes de contrabando. Sendo uma actividade clandestina, não é ainda hoje possível ter informações rigorosas sobre o roubo de diamantes. Mas Cleveland presume que, com o passar dos anos, o número de roubos não tenha aumentado, uma vez que, através de entrevistas a antigos trabalhadores angolanos e portugueses, concluiu que as medidas securitárias da empresa foram sendo gradualmente reduzidas. Uma dessas medidas pode ler-se num relatório elaborado pelos administradores do Estado na Diamang e enviado a Oliveira Salazar, em 1938: às dezenas de operários indígenas que trabalhavam na central de triagem não era permitido sair; eram ali mantidos durante meses, vigiados por funcionários brancos.
O Tabu: mulheres africanas vítimas de abusos sexuais
Publicado em 1949, no Rio de Janeiro, e proibido pela censura em Portugal, o romance “Terra Morta”, de Fernando Castro Soromenho, denunciou publicamente, e pela primeira vez, o tratamento violento e cruel infligido pela Diamang aos trabalhadores africanos. Soromenho nascera em Moçambique, em 1910, mas fora para Angola, nomeadamente para a Lunda, no seu primeiro ano de vida. O seu pai, Artur Ernesto de Castro Soromenho, era o governador do distrito.
Depois de alguns anos em Lisboa, onde estudou, Soromenho voltou para Angola, cumpriu o serviço militar e entrou depois para os quadros da Companhia. Conheceu de perto aquilo que escreveu em “Terra Morta”: as diversas e tristes faces da violência colonial. Por isso, o romance é também um documento histórico, onde são descritos os abusos e as práticas repressivas, num enredo que se desenvolve na povoação de Camaxilo. Perante uma situação de violência arbitrária contra os africanos, uma personagem diz:
— “Eu não os defendo por serem negros, porque para mim a cor e a raça não contam, mas sim como homens que são tratados como animais, como bestas, nada mais.”
O trabalho forçado e a recruta coerciva de trabalhadores angolanos – os “escravos da Diamang”, como lhes chama o autor –, assim como a violação explícita da legislação colonial relativa ao trabalho indígena, surgem igualmente no livro. E é através das personagens dos colonos Francisco Bernardo e Gregório Antunes que Castro Soromenho aborda um tema que, à data de publicação da obra e em muitas décadas posteriores, foi tabu: os abusos sexuais perpetrados pelos funcionários brancos e pelos “capitas” contra as mulheres negras.
Os primeiros registos de casos coincidiram com a chegada das mulheres dos chamados “contratados” africanos à Lunda – trabalhadores forçados a trabalhar para a Diamang. Elas acompanhavam os seus maridos para as minas e a empresa destinava-lhes trabalho nos campos agrícolas, nas messes e cozinhas e nos acampamentos junto às minas, onde faziam limpezas. Apesar de fundamental para a Companhia, o trabalho das mulheres mantinha-se na sombra. E era fundamental sobretudo porque eram elas quem, nas quintas e plantações, garantiam a produção agrícola que alimentava a força laboral. Tal como acontecia em toda a área concessionada, a divisão entre brancos e negros acontecia igualmente nas plantações e nos produtos a plantar: existiam campos para o cultivo de mandioca, feijão e batata doce (alimentos para consumo exclusivo das famílias destas mulheres); e noutros campos plantava-se arroz, vegetais e pomares, destinando-se as colheitas às famílias brancas.
Gincana infantil apenas para brancos @Diamang Digital
Não só as mulheres nunca surgiram nos relatórios como mão-de-obra da Companhia, como eram ainda sujeitas a precárias condições de trabalho, maus tratos, castigos corporais e abusos sexuais. Foram sobretudo as mulheres que trabalhavam na agricultura quem mais sofreram abusos e assédios sexuais. Segundo Todd Cleveland, a Diamang optou por ignorar os crimes e o comportamento dos seus funcionários. E quando reagia, pontualmente, a sua preocupação centrava-se apenas nos efeitos que os casos de abusos poderiam vir a ter nos índices da presença de famílias negras na Lunda (algo que a empresa valorizava, crendo que isso aumentaria a produtividade dos “contratados”).
Nos anos 50, porém, uma série de violações a mulheres negras que trabalhavam nas plantações na vila do Songo gerou um pequeno escândalo interno. Os trabalhadores alertaram o chefe do posto para os crimes cometidos pelos encarregados de obras europeus e por alguns “capitas”. Mas não houve qualquer castigo. A denúncia gerou vasta correspondência entre alguns dirigentes da Companhia, mas, de acordo com Cleveland, as cartas não manifestavam qualquer preocupação com as vítimas, detendo-se antes no impacto dos abusos sobre a manutenção das famílias dos trabalhadores africanos na área concessionada. “(…) esta grave conduta perpetrada por alguns indivíduos, alguns deles funcionários europeus, representa o maior impedimento na nossa luta para que os trabalhadores estejam acompanhados pelas suas mulheres”, escreveu J. Tavares Paulo, director-geral na Lunda, citado por Cleveland.
Uma outra carta, posterior, do mesmo responsável, descarta a “gravidade” e diz que tudo pode não passar de argumentos fantasistas dos africanos para evitarem o trabalho: “(…) os administradores podem estar a exagerar no número de queixas. Os africanos também exageram, até porque têm uma história de fazer e dizer qualquer coisa para evitar trabalhar nas minas.”
Na história da Diamang não há registo de qualquer punição por estes crimes. Até hoje desconhece-se o número de mulheres que foram vítimas de abusos sexuais. Os responsáveis a quem poderiam queixar-se ignoraram ostensivamente os casos, em nome da imaculada (e ilusória) imagem da Diamang.
“Um apartheid não declarado”
A cidade do Dundo foi uma criação da Diamang, que escolheu a margem esquerda do rio Luachimo para edificar aquela que foi uma espécie de capital da Companhia. Leite de Castro, engenheiro da empresa, escreveu, em 1929, que ali se encontravam “(…) as principais habitações para brancos, algumas das quais com pequenos jardins anexos, há numerosos escritórios, armazéns, oficinas excelentemente montadas, com tornos e serras mecânicas, casas de venda, garagens, hospitais, dispensários, uma farmácia, uma estação telégrafo-postal e outra de TSF, uma instalação frigorífica, etc (…)”. Dotada com condições inéditas na colónia, a cidade viu surgir, a partir dos anos 30, as primeiras estruturas recreativas: um court de ténis, um picadeiro, um jardim de aclimatação de plantas e uma Casa do Pessoal da Diamang.
Piscina na Vila de Andrada. Exclusiva para brancos @Diamang Digital
Ainda na década de 30 tiveram início os trabalhos para a fundação do Museu do Dundo, que, nos anos 40, se instalou num edifício construído exclusivamente para albergar as colecções. Foi ali recriada uma Aldeia Nativa; nos anos 50, aberto um Laboratório de Investigações Biológicas; e na década seguinte, uma secção de Arqueologia e Pré-História. Gilberto Freyre visitou este Museu.
A convite de Sarmento Rodrigues, ministro do Ultramar, Freyre, escritor, jornalista e sociólogo brasileiro, pai da teoria luso-tropicalista sobre a política colonial portuguesa, partiu para Angola em Dezembro de 1951. O roteiro da visita previa o Dundo. E foi ali que Freyre descobriu que a área concessionada divergia do modelo de gestão colonial português. Ou seja, como escreveu o antropólogo Jorge Varanda na mais recente edição da revista “História”, do Jornal de Notícias, Freyre não gostou do que viu porque a Diamang não era luso-tropicalista.
Festa de Natal oferecida aos "assimilados" (negros que podiam aceder à cidadania portuguesa se tivessem autonomia financeira, hábitos europeus e fluência no português) @Diamang Digital
O diário desta e de outras viagens realizadas por Gilberto Freyre foi publicado no importante livro “Aventura e Rotina. Sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de carácter e acção”, editado em 1954 (no mesmo ano em que Craveiro Lopes, Presidente da República, visitou a Diamang). O autor não poupou críticas à empresa e às suas orgânicas sociais, descrevendo vividamente aquilo que viu no Dundo. Depois de visitar o Museu, escreveu:
“Deixo-me fotografar, no próprio Museu, ao lado de um velho soba, vestido como nos seus velhos dias de príncipe e que a Companhia conserva para dar pitoresco às ruas do Dundo. Um pobre soba carnavalesco. A sua sobrevivência, como figura já quase de museu, é simbólica de toda uma política de exterminação violenta e rápida, das culturas indígenas, a que se sentem obrigadas as grandes empresas capitalistas na África (…).
Sala de caça do Museu do Dundo @Diamang Digital
É o que acontece dentro das grandes empresas capitalistas que hoje se instalam na África e se utilizam de africanos arrancados às suas tribos sem lhes darem oportunidade de participação em novos sistemas de convivência e de cultura. São eles mantidos num ambiente socialmente artificial – e não só artificial: humilhante – do qual só poderá resultar a sua degradação. (…) O estado de ‘trabalhador nativo’ do africano destribalizado, dentro das grandes empresas capitalistas instaladas na África, é uma situação de condenado sociologicamente à morte. Baseia-se na concepção de ele ser inferior ao branco, não transitoriamente – como cativo de guerra ou devido a outro acidente – mas como raça. Biologicamente. Fatalmente.”
No documentário “Dundo, memória colonial” (2009), a jornalista Diana Andringa, nascida no Dundo em 1947, filha de um funcionário da empresa, corroborou o que Freyre viu: os nativos eram “objecto de estudo museológico: a Companhia gravava-lhes os sons, guardava-lhes as estátuas e objectos de arte, estudava-lhes os desenhos de areia”. Vizinha de José Redinha, mentor e conservador do Museu, Andringa “via os negros trazerem-lhes as estatuetas, os bancos, os instrumentos musicais (…)”.
Os nativos iam, progressivamente, sendo despojados de tudo, obrigados a legar a sua cultura às montras do Museu e vendo ser-lhes negada a participação nas actividades do espaço, como a Festa Desportiva, a Festa da Melhor Aldeia ou a Festa Grande. Na área concessionada não existia África – era a “ausência de África na África”, definiu Andringa. Que recordou assim a sua infância:
“A nossa vida passava-se entre brancos, e não só entre brancos: entre brancos da mesma classe social. Os filhos dos engenheiros não brincavam com os filhos dos mecânicos brancos como não brincavam com os filhos dos criados negros. Os criados negros davam-nos o jantar nos dias em que havia convidados, levavam-nos a passear, inventavam histórias para me convencer a comer: mas, nas festas, nos lanches, as senhoras falavam deles – deles que ali tomavam conta dos meninos, traziam os refrescos, garantiam o deslizar suave da vida – como se não existissem. Davam-lhes nomes portugueses, porque lhes parecia complicado os nomes de família. Ensinavam-nos a tocar, nos coretos, ‘Joséxito, já te tenho dito…’, em vez das músicas de marimbas, tambores e kissanges que o vento nos trazia à noite, quando o sono tardava. Tratavam-nos sempre como garotos, mesmo quando eram homens feitos e tinham filhos de diversas mulheres.”
Tudo na Diamang transpirava segregação racial – das práticas laborais às habitações, passando pelos cuidados de saúde, actividades de lazer, alimentação. Vivia-se numa regime de “apartheid não declarado”, designou a jornalista. Em 1955, um dos mais destacados administradores da Companhia, Ernesto de Vilhena, escreveu que os bairros residenciais dos brancos obedeciam aos “recomendáveis preceitos da arquitectura e da higiene mais adequada à permanência e trabalho de uma (…) comunidade branca”. Tratavam-se de habitações unifamiliares, com varanda e jardim – elementos que, segundo Nuno Porto, permitiam manter a privacidade e a salubridade das casas, possibilitando ainda o seu arejamento.
Habitações para a comunidade branca, em Kalonda @Diamang Digital
Destinadas aos brancos existiam casas para solteiros e para famílias. A Diamang oferecia a habitação, o mobiliário, roupas de mesa, cama e casa-de-banho, louças e faqueiros. Algumas tinham “sabor californiano e (…) gramados que lembram os californianos”; outras estavam rodeadas por “sebes de buganvílias” e “jardins à inglesa”; “Em Vila Andrade [o correcto é Vila Paiva de Andrada], servem-nos um lanche perfeitamente europeu sobre um gramado também perfeitamente europeu. ‘Parece que estamos na Europa!’ – diz-me alguém.”, escreveu Freyre. E prosseguia:“Tem-se aqui, na verdade, um conforto profilático e quase clínico, de que os europeus do Norte e, principalmente, norte-americanos, de tal modo se cercam nos trópicos, que vivem vida de estranhos à natureza tropical. Vida de indivíduos que, para não se deixarem contaminar por ambientes tropicais, vivessem como doentes ricos em hospitais ou em casas de saúde. Vida artificial.”
Jogo de voleibol entre as equipas Dundo [Dundu] e Zona Leste para a disputa da Taça Conselho de Administração. Estas atividades lúdico-desportivas eram destinadas à comunidade branca @Diamang Digital
Nas zonas residenciais para os indígenas, situadas fora do perímetro urbano, as casas foram inicialmente construídas pelos próprios trabalhadores e somente nos anos 60 o adobe e a palha que compunham as habitações foi substituído por cimento e zinco, que era usado nos telhados. Freyre, impedido de ver os interiores, ficou surpreendido com as folhas de zinco: “(…) devem torná-las infernais, nos dias mais quentes. Seria interessante que a Companhia de Diamantes, rica como é, e tecnicamente arrojada como se mostra, se colocasse na vanguarda dos modernos estudos em torno do problema de casas para trabalhadores nos trópicos (…)”.
Bairro para trabalhadores contratados, em Katuka @Diamang Digital
As plantas das povoações eram desenhadas com base na discriminação racial. Na cidade do Dundo existiam áreas reservadas unicamente para os brancos e outra para os africanos. No interior do círculo urbano, nomeadamente no centro, situavam-se a praça central e os edifícios da administração, que definiam a fronteira com a área residencial e a dos serviços (armazéns, garagens, oficinas) exclusivamente para brancos. Em torno destas zonas encontravam-se os espaços destinados ao lazer (a piscina, os recintos desportivos, um picadeiro), a igreja, o hospital, o Museu e um jardim de aclimatação. A planificação das cidades e povoações obedeciam ao sistema panóptico: todos viam os outros; todos eram vistos por todos. Lembrava as “repúblicas soviéticas”, escreveu Freyre:
“(…) o que o Dundo é em ponto pequeno e solitariamente: uma comunidade regulada e fiscalizada de tal modo no conjunto da sua vida quotidiana que ninguém aqui tem vida individual ou privada. Tudo acontece às claras, como desejava Augusto Comte. Às claras e ao som de sinetas, matematicamente exactas. O próprio amor. Tenho também a impressão de que a vida nas pequenas repúblicas soviéticas deve assemelhar-se, em mais de um ponto, à vida às claras e sob medida que se vive no Dundo. O que a torna, ao mesmo tempo, arcaica – a das reduções jesuíticas – e moderníssima – a de repúblicas socialistas mais autoritariamente governadas na fase de transição que atravessam.
(…)
Sente-se que nenhum estranho, nenhum empregado da Companhia, nenhum branco, nenhum preto, é aqui um homem à vontade mas um indivíduo vigiado, espiado, subtilmente fiscalizado por secretas. O ambiente é de novelas ou de fitas inglesas de mistério.”
Segundo Nuno Porto, a comunidade expatriada (europeus brancos) que residia no Dundo tinha algumas particularidades demográficas: não existiam velhos nem adolescentes, apenas homens em idade activa, com esposas e crianças. Na generalidade era uma população escolarizada. E em termos de sociabilidade era “uma comunidade em clausura deliberada, envolvida num processo de edificação própria inerente à missão civilizadora de que se crê investida – crença essa sustentada pela própria composição populacional do Dundo e pela situação de fronteira com a África negra, permitindo-lhe assumir-se como uma espécie de posto avançado da nação e da empresa.”
Aula de equitação no Dundo, apenas para a comunidade branca @Diamang Digital
A política colonial portuguesa, ou melhor, aquilo que Freyre entendia que ela era, com uma missão civilizadora e branda, não estava presente nos milhares de quilómetros que compunham o domínio da Diamang. Aquilo que ele viu em 1951 foi um “sistema rígido”, no qual, “antilusitanamente”, até existiam igrejas para brancos e igrejas para negros. Portugal não tinha, para Freyre, qualquer responsabilidade sobre este sistema que não era “sociologicamente português, prejudicado, como se acha, por um racismo que é de origem belga e por um excesso de autoritarismo que é também exótico em sua origem e em seus métodos”.
“Irredutivelmente belga” era a forma como a Diamang tratava os trabalhadores africanos, como se fossem “prisioneiros” da Companhia. Na Central de Escolha (de triagem das pedras), “adolescentes, moços, solteiros, vivem meses sem lhes ser permitido sair da central: um que saísse poderia ser portador de uma fortuna inteira em diamantes engolidos ou escondidos nas partes mais secretas do corpo. (…) São bem alimentados, bem cuidados, bem alojados os pretos da Central. Têm salas de jogos, com as paredes pintadas com motivos de vida de caça e pesca. Segregação, castidade, renúncia a mulher. Nunca sabem quando saem, que é para não se prepararem para a saída, engolindo algum diamante.”
Sessões de cinema para os indígenas, categoria dada àqueles que não podiam aceder à cidadania portuguesa porque não tinham hábitos culturais europeus @Diamang Digital
O diário de viagem de Freyre suscitou, previsivelmente, reacções de protesto por parte de vários responsáveis da Companhia. Incluindo o administrador-delegado, Ernesto de Vilhena, que refutou as acusações de segregação racial, explicando que a Diamang se regia por um “cuidado fraternal Português”.
Num texto intitulado “Aventura e Rotina. Crítica de uma Crítica”, publicado também em 1954, desvalorizou as críticas de Freyre, argumentando que o brasileiro não entendera a Companhia. O Dundo não era uma “simples vila ou lugar habitado de Angola”, mas antes “o centro de uma grande empresa industrial”, que actuava num espaço de 30 mil quilómetros quadrados.
Escola do Indígena, criada em 1942 @Diamang Digital
Na cidade trabalhavam 332 europeus (“acompanhados por 417 mulheres e crianças”) e 17 mil indígenas, “reunidos e organizados com vista a um objectivo bem determinado, que é o de extrair diamantes, em condições de boa administração e de economia”. E continuava: a Companhia ocupava uma área que correspondia a “quase um terço de Portugal Continental” e tinha uma população de 80 mil pessoas. A Diamang tinha um “objectivo bem determinado” e esse “objectivo”, concluia, consistia em criar “o bem comum”.
O argumento não era novo. A tese de uma “acção protectora” sobre os trabalhadores indígenas, traduzida na tentativa de os afastar de uma vida pobre e desorganizada, foi várias vezes invocada para refutar críticas à Diamang, segundo a historiadora angolana Ana Paula Tavares.
Saúde para brancos; saúde para negros
No relato da viagem ao Dundo, Gilberto Freyre fez uma pequena alusão aos estabelecimentos de saúde: “Vejo além do hospital e dos serviços de radiologia, as maternidades. As maternidades para indígenas. As maternidades para europeus.”
A prestação de cuidados médicos é uma importante componente da história da Diamang, sobretudo no estudo das práticas de segregação racial. Em “Filhos, enteados e apadrinhados: discursos, políticas e práticas dos serviços de saúde da Diamang”, o antropólogo Jorge Varanda prova que, apesar da retórica sobre a equidade na prestação de cuidados de saúde, as diferenças de tratamento entre expatriados e africanos existiram desde a criação da empresa até ao fim do Império.
"Indígenas" grávidas na Maternidade de Kasangida @Diamang Digital
Varanda escreve que a Diamang não era um caso ímpar nas colónias africanas. Contudo, as classificações da Companhia iam para além das caracterizações rácicas, pois implicavam também resultados de produtividade. A pesquisa deste investigador permitiu verificar que, entre os africanos, aqueles que recebiam melhores tratamentos médicos eram os mineiros, seguidos das suas famílias. As populações locais, por seu turno, não tendo qualquer ligação à Diamang, eram desprezadas.
A evolução dos Serviços de Saúde pode ser dividida em três períodos cronológicos. O primeiro, de 1917 até 1933, foi uma fase em que escasseavam os meios, as infraestruturas e o pessoal de saúde. Nestes anos a medicina era eminentemente curativa, sublinha Varanda, e atentava mais nos europeus, prestando cuidados ocasionais aos africanos. A partir de 1933 aumentou substancialmente o número de pacientes com a doença do sono e não tardou para que se assistisse a uma epidemia. Isso mesmo exigiu uma reorganização dos Serviços de Saúde: construiram-se unidades em zonas rurais; reforçaram-se os cuidados médicos e sanitários junto dos trabalhadores, famílias e população local.
Jorge Varanda fala ainda numa terceira fase, que emergiu em 1957 e prolongou-se até à independência de Angola, abrangendo os anos da Guerra Colonial. O quadro de médicos com formação superior diminuiu e, consequentemente, surgiram efeitos na prestação dos cuidados de saúde. Isto afigurou-se problemático porque o número de trabalhadores não parava de aumentar.
Funcionários do Serviço de Saúde da Diamang @Diamang Digital
Ao longo de quase 60 anos, não existiram alterações na discriminação nos serviços de saúde: primeiro estavam os brancos; depois os africanos (sendo que mesmo entre estes, a Companhia promovia a segregação: os que trabalhavam na empresa tinha prioridade sobre os que apenas residiam na área). “As representações de um colonialismo atento à saúde dos trabalhadores, famílias e populações locais apresentadas em fóruns internacionais não tinham tradução num acesso equitativo à terapêutica para todos os que habitavam a Lunda da Diamang”, escreveu o antropólogo, apontando ainda que esta diferenciação reflectiu-se na morbilidade e nas causas de morte.
Depois da construção das “lavarias” (onde o cascalho era lavado e separado das pedras preciosas), em finais dos anos 20, aumentou consideravelmente o número de acidentes e mortes. Cleveland explica que os acidentes mais frequentes resultavam nas mutilações dos membros superiores e inferiores. Na década seguinte, com a introdução das vagonetas para transportar o cascalho e a terra, a taxa de feridos cresceu anualmente – de 52 trabalhadores, em 1934, para 130 em 1937, incluindo 16 mortos.
Em 1948, a Diamang publicou um estudo detalhado sobre os acidentes de trabalho ocorridos nas minas nos seis anos anteriores. Os que envolviam as vagonetas lideravam a estatística. Os médicos dos Serviços de Saúde e os encarregados das minas apontavam frequentemente o dedo à “falta de cuidado” dos trabalhadores que empurravam as vagonetas. No entanto, antigos funcionários contaram a Cleveland que o meio de transporte era empurrado manualmente por um só homem, colina acima, pelo que os acidentes aconteciam com regularidade e muitos perderam as pernas. Por vezes, as vagonetas nem sequer eram guiadas por adultos, mas por crianças, como João Paulo Sueno, que, depois de ter começado a trabalhar, aos oito anos, como criado numa casa de funcionários brancos, foi mais tarde, aos 11 anos, operador das vagonetas.
Entre os trabalhadores africanos, as doenças mais comuns, pelo menos até finais dos anos 50, eram a malária, as infecções respiratórias, a gripe, as doenças digestivas, a astenia, a varíola, as doenças venéreas e problemas de pele. E os brancos sofriam sobretudo de problemas intestinais e doenças venéreas. As taxas de mortalidade destes eram residuais quando comparadas com as dos indígenas. Trabalhar para a Diamang era um perigo para a saúde, escreveu Edward Ross no seu famoso Relatório sobre as condições de trabalho em Moçambique e em Angola, datado de 1925. Mas era um perigo que atingia sobretudo os africanos.
PIDE quis infiltrar Flechas na Diamang
Durante os anos da Guerra Colonial, a área de concessão da Diamang conservou-se incólume. Embora muitos trabalhadores africanos estivessem informados acerca da actuação dos movimentos de libertação, através do que ouviam nas emissoras que transmitiam clandestinamente, nunca se assistiu a qualquer rebelião na Companhia. No entanto, a proximidade da fronteira com a República Democrática do Congo levou a PIDE a ponderar uma acção preventiva: criar grupos de Flechas na Lunda.
Crianças da Mocidade Portuguesa numa cerimónia de homenagem à luta contra a resistência anti-colonial @Diamang Digital
No arquivo da PIDE/DGS, no interior de uma pasta sobre a Diamang, encontra-se uma cópia de uma notícia publicada no “Evening Star”, de Ipswich, na qual se lê que o tráfico ilegal de diamantes, feito por funcionários, estaria a alimentar as actividades dos movimentos de guerrilha, financiando a compra de armas e munições. O artigo data de 11 de maio de 1968 e fora enviado para a direcção-geral da polícia política dois meses depois, em julho, por Ângelo Ferreira, responsável pelo Gabinete dos Negócios Políticos do Ministério do Ultramar. A guerra em Angola arrastava-se há oito anos.
No Verão seguinte, em 1969, os serviços de segurança interna da República Democrática do Congo alertaram Portugal de que os militares portugueses atacavam com frequência as populações rurais congolesas que viviam junto à fronteira com a zona de concessão da Diamang, matando os habitantes e incendiando as casas. No Congo, refira-se, existiam campos de treino dos guerrilheiros.
A ameaça de “politização” dos funcionários da Companhia levou o inspector-superior da PIDE em Luanda, José Lopes, a propor a Santos e Castro, governador-geral de Angola, a constituição de grupos de Flechas (em síntese: mercenários africanos recrutados pela PIDE para operações especiais) na zona Norte da Lunda. Os militares portugueses e os serviços de segurança e informação da própria Diamang eram “precários ou mesmo ineficazes perante uma situação de emergência”, notava José Lopes. Apesar de os avisos datarem de finais dos anos 60, os responsáveis pela PIDE em Angola avançaram com esta ideia em março de 1974, ou seja, nas vésperas do 25 de Abril, pelo que os Flechas nunca chegaram a actuar na Lunda. Se o tivessem feito seria a primeira vez (pelo menos, a primeira vez documentada), em 58 anos, que a PIDE iria agir na área concessionada.
A PIDE, porém, chegou a redigir uma espécie de memorando sobre a missão destes operacionais na Diamang: seriam, numa primeira fase, quatro centenas de homens que iriam garantir a segurança “contra actividades subversivas” nas áreas junto à fronteira com o Congo, vigiando também os empregados da Companhia para evitar o tráfico de diamantes. Esta vigilância seria feita sobretudo por infiltrados que iriam trabalhar em zonas mais vulneráveis e que estariam acompanhados pelas suas famílias, devidamente instaladas nos bairros dos trabalhadores negros.
Depois da Independência
Em 1961, ano de eclosão da guerra em Angola, a produção diamantífera da Companhia bateu o recorde de 662 milhões de escudos (mais de 3 milhões de euros). Mas, nos anos seguintes, a Diamang recuou nos trabalhos de prospecção. O retorno dos colonos de Angola, após o 25 de Abril, atingiu a empresa, diminuindo os quadros de gestão e de engenharia (a Diamang nunca autorizou que os africanos ocupassem lugares naquelas áreas). Fecharam-se minas; a mão-de-obra desceu a pique (de dezenas de milhares de pessoas para cerca de seis mil trabalhadores); e o mesmo aconteceu com a produção em quilates: de 2,4 milhões em 1974 para menos de 359 mil em 1975/76.
Funcionários e famílias brancas num jantar no salão de festas da Casa do Pessoal @Diamang Digital
De acordo com Cleveland, os trabalhadores africanos receberam as notícias da revolução com um misto de exaltação e incerteza. Os militares portugueses mantinham-se em Angola e na Lunda permanecia a força de segurança privada da Diamang. Somente a 10 de novembro de 1975, na véspera da proclamação da independência de Angola, a incerteza dissipou-se, quando os últimos dirigentes portugueses da Companhia arriaram pela última vez, no Dundo, a bandeira portuguesa.
Apesar das carências de pessoal técnico e do fecho de muitas minas, a Diamang sobreviveu como entidade corporativa até agosto de 1977, quando o Estado angolano iniciou o processo de nacionalização. “Ao longo dos seus 56 anos de existência, a Diamang, mantendo o controlo sobre a produção e a comercialização de uma das principais riquezas do povo – os diamantes –, nunca deu ao Povo Angolano a oportunidade para participar na gestão desta riqueza e para recolher os seus lucros”, afirmou Agostinho Neto, primeiro Presidente do país.
A guerra civil que teve início logo em 1975 atrasou o processo. Os activos da Companhia foram transferidos para a Endiama ( Empresa Nacional dos Diamantes de Angola) apenas em 1988, com o conflito ainda em curso. E durante os anos da guerra, segundo Cleveland, a Lunda transformou-se numa espécie de “Oeste selvagem”, local de combate entre o MPLA e a UNITA. Mas também lugar onde confluíam garimpeiros e contrabandistas oriundos de diversas regiões de África, em busca de diamantes. Foi nessa altura que o Museu do Dundo foi pilhado.
O fim da guerra, em 2002, não atenuou a turbulência na Lunda. Cleveland escreve que o Governo angolano prossegue na tentativa de travar, através de expulsões violentas, vagas de imigrantes mineiros. E as populações locais continuam a testemunhar “uma vez mais, o êxodo das riquezas da sua terra natal”.
Sem comentários:
Enviar um comentário