domingo, 9 de setembro de 2018

Cinco séculos de comércio livre e proteccionismo, parte 1: 1498-1580 /premium

Comércio Livre e Proteccionismo
José Carlos Fernandes
18 Agosto 2018












Num mundo cada vez mais globalizado, o presidente Trump deu início a uma guerra tarifária. 
É mais um episódio numa longa história de oscilações entre comércio livre e proteccionismo.

Trump impõe uma tarifa de 25% sobre as importações de aço e alumínio (e ameaça fazer o mesmo aos automóveis), a União Europeia retalia com tarifas de 25% sobre as motos Harley-Davidson e o whiskey americano e a China faz retaliações análogas. 
A Harley-Davidson, cujas vendas estão em queda há quatro anos consecutivos, fica preocupada e anuncia que irá deslocalizar a produção para fora dos EUA e Trump reage, no Twitter, com dois tipos de argumentos: um de força, ameaçando impor tarifas elevadíssimas à entrada nos EUA de Harley-Davidson fabricadas no estrangeiro, e outro de natureza místico-sentimental, proclamando que “uma Harley-Davidson nunca deverá ser construída noutro país, nunca!”, caso contrário a marca “perderá a aura” (talvez Trump não o saiba, mas desde 1998 que a Harley-Davidson tem uma fábrica em Manaus, no Brasil, e outra em Bawal (Haryana), na Índia).

















Operários indianos afadigam-se em torno de motos (notoriamente destituídas de aura) na fábrica da Harley-Davidson de Bawal, Índia

Desta vez, a União Europeia mostrou que sabe “bater onde dói mais”: as motos Harley-Davidson e o whiskey americano não só são produtos quintessencialmente americanos, como são produzidos em estados que deram a vitória a Trump nas eleições presidenciais de 2016: a Harley-Davidson tem sede em Milwaukee, no Wisconsin, o whiskey vem do Kentucky e do Tennessee. 
E não se pense que são notas de rodapé nas trocas comerciais: em 2017, as exportações de whiskey americano em 2017 atingiram 1000 milhões de dólares e a Harley-Davidson vendeu 39.773 motos na Europa.

Ninguém sabe como irá acabar esta guerra tarifária, mas muitos economistas receiam que, se passar de “escaramuça” a “guerra total”, prejudicará todos os “beligerantes” e poderá roubar um ou dois pontos percentuais ao PIB mundial nos próximos dois anos. 
Claro que é impossível prever os próximos passos de alguém como Trump, que começara por afirmar que “as guerras comerciais são boas e fáceis de ganhar” (ver Guerra comercial? De que é que Trump está a falar?), mas depois teve uma reunião com Jean-Claude Juncker que resultou no anúncio de taxas alfandegárias nulas (ver Alemanha congratula-se com acordo Juncker-Trump que pode salvar milhões de empregos).

As guerras tarifárias e as oscilações dos países entre comércio livre e proteccionismo são quase tão antigas como o comércio internacional, numa história cheia de contradições, reviravoltas, ameaças, uso de força bruta e sonoras proclamações de princípios que apenas servem para mascarar interesses mesquinhos e conjunturais. 
Esta é a primeira de quatro partes sobre o assunto.

1 - Prólogo
Reza a lenda que o porto espanhol de Tarifa, perto do Estreito de Gibraltar, terá sido o primeiro a exigir um pagamento aos navios pela descarga de mercadorias nas suas docas e que a palavra “tarifa”, no sentido de taxa aduaneira, terá aí a sua origem. 
O nome da cidade provém, por sua vez, de Tarif ibn Malik, um lugar-tenente de Tarik ibn Ziyad, o general berbere que comandou a conquista islâmica da Espanha visigótica no ano 711 – antes de lançar o assalto Tarik ibn Ziyad enviou Tarif ibn Malik em reconhecimento à costa andaluza e o primeiro lugar a que este aportou ficou com o seu nome.












Castelo de Tarifa

Outros etimologistas defendem que “tarifa” terá, com efeito, origem árabe, mas que esta nada tem a ver com a cidade de Tarifa: a palavra provirá de “ta’rif”, que significa “notificação, inventário” (a partir da raiz “arafa” = “saber”). 
A palavra entrou no latim medieval como “tarifa” e no italiano como “tariffa”, sendo depois incorporada no francês (“tarif”), português, espanhol (“tarifa”), inglês (“tariff”), alemão (“tarif”) ou holandês (“tarief”).


2 - Calecute, 1498: Os presentes indigentes de um rei poderoso
Não é possível saber se o Museu das Descobertas anunciado por Fernando Medina alguma vez abrirá portas ou se terá sequer este nome (face à onda de contestação à “narrativa eurocêntrica”, João Miguel Tavares propôs, ironicamente, no Público, a alternativa Museu da Culpa do Homem Branco), mas se o dito projecto acabar por concretizar-se e incluir, como será expectável, um núcleo sobre a chegada à Índia de Vasco da Gama, em 1498, o rigor histórico poderá ditar que a tradicional formulação “descoberta do caminho marítimo para a Índia” seja substituída por “descoberta do caminho marítimo para Melinde”.






















Partida de Vasco da Gama para a Índia, por Alfredo Roque Gameiro

Sem pretender pôr em causa a coragem, tenacidade e engenho de Gama e dos navegantes portugueses que o antecederam, a parte mais árdua e destemida da sua viagem foram os primeiros dois terços, descendo pela costa atlântica de África e dobrando o Cabo da Boa Esperança. 
Da Ilha de Moçambique para norte estava-se em águas conhecidas – não para os europeus, claro, mas para os mercadores árabes e indianos que, há séculos, navegavam regularmente entre os portos africanos e asiáticos. 
Gama sabia disto, de forma que se apresentou perante o Sultão de Moçambique como mercador muçulmano. 
Mas os portugueses não conseguiram manter o disfarce durante muito tempo, até porque o seu aspecto andrajoso e pouco saudável, resultante das privações sofridas durante a viagem, e o carácter indigente dos presentes oferecidos ao sultão inspiravam pouca confiança. 
O sultão estava bem familiarizado com os mercadores árabes: naquele momento estavam fundeados no porto da Ilha de Moçambique quatro navios árabes, com “ouro, prata, cravo-da-índia, pimenta, gengibre e anéis de prata e também uma boa quantidade de pérolas, jóias e rubis”.























Ilha de Moçambique, num mapa de 1598 por Pieter van den Keere

O matreiro sultão ficou ainda mais desconfiado quando pediu para dar uma olhadela aos exemplares do Alcorão destes “mercadores árabes” e Gama respondeu com evasivas. 
Os atritos com a população e autoridades locais foram subindo de tom e Gama acabou por despedir-se da Ilha de Moçambique com uma salva de tiros de canhão.

Retomando a viagem para norte, após ter saqueado os navios mercantes árabes que foi encontrando, a frota de Gama chegou, a 7 de Abril de 1498, a Mombaça, um dos principais portos da África Oriental, onde Gama esperava poder contratar um piloto que o levasse à Índia.

Mas também aqui os portugueses foram recebidos com uma desconfiança que não tardou a converter-se em hostilidade. 
Só uma semana depois e 120 Km a norte, no pequeno porto de Melinde (hoje Malindi, no Quénia), cujos governantes estavam de candeias às avessas com os de Mombaça, Gama obteve o piloto que pretendia. 
Este, beneficiando dos séculos de saber acumulados sobre a navegação sob o regime de monções, pôs a frota de Gama em Calecute (Kozhikode) num ápice: a armada partiu de Melinde a 24 de Abril e a 21 de Maio os navios portugueses lançavam âncora no principal porto de comércio de especiarias da Índia.
Vasco da Gama desembarca em Calecute, numa ilustração de Allan Stewart, 1911

Gama começou por ser bem recebido pelo samorim (samoothiri) de Calecute, mas a relação não tardou a azedar. 
Para começar, os presentes do rei de Portugal que Gama apresentou ao samorim poderiam ter impressionado um soba angolano, mas suscitaram o desprezo do samorim de uma das mais prósperas cidades do mundo: 12 peças de tecido riscado, quatro barretes escarlates, seis chapéus, quatro colares de coral, seis bacias de latão, duas pipas de mel, outras duas de azeite e – o mais desajeitado – uma arca com açúcar (o equivalente a levar gelo para os esquimós). 
Por outro lado, os mercadores árabes começaram a intrigar contra os portugueses, insinuando junto do samorim que estes seriam piratas e não embaixadores de um reino poderoso. 
E quando Gama começou a tentar negociar condições comerciais, o samorim atalhou que os portugueses deveriam submeter-se às regras válidas para todos os que comerciassem em Calecute, o que implicava pagamento de taxas aduaneiras – em ouro, um bem que os portugueses não davam mostras de possuir.



























“Vasco da Gama perante o samorim de Calecute”, por Veloso Salgado, 1898

No final de Agosto, após mais de três meses de equívocos e atritos (que incluíram a tomada de reféns), a frota de Gama zarpou de regresso a Portugal, com um carregamento de especiarias que, embora estando longe das ambições portuguesas, renderia, ao ser vendido na Europa, 60 vezes o custo da expedição. 
Mas a travessia do Índico rumo a Melinde não se fez com a facilidade com que decorrera no sentido inverso: desconhecendo as particularidades da navegação no Índico, Gama partiu num período de ventos desfavoráveis, pelo que gastou 132 dias para cumprir o trajecto que antes lhe custara 23 e perdeu metade da tripulação devido ao escorbuto e às privações.

Foi um erro que se somou a dois equívocos genéricos apontados por Nigel Cliff em Guerra Santa: As viagens épicas de Vasco da Gama e o ponto de viragem em séculos de confrontos entre civilizações (Texto): “a empresa portuguesa assentava em duas noções profundamente ocidental-cêntricas. 
A primeira era que a Índia estava povoada de cristãos que ficariam tão encantados por se reunirem com os seus irmãos ocidentais que mandariam os seus aliados muçulmanos àquela banda. 
A segunda era a de que, apesar de toda aquela inestimável riqueza, os indianos eram um povo simples que entregaria os seus valiosos produtos por tuta e meia”.














Calecute, numa gravura do atlas Civitates orbis terrarum (1572), de Georg Braun & Franz Hogenbergs

3 - Goa, 1517: Terror no Índico
Os portugueses não tardaram a corrigir o tiro: quando regressaram, já não vinham meramente como comerciantes pacíficos e apostavam na superioridade dos seus navios e da sua artilharia para impor as suas regras aos sultões e samorins e varrer dos mares a frouxa e pouco organizada oposição muçulmana. 
E não foi preciso muito tempo para isso acontecer: quando Afonso de Albuquerque, o 2.º vice-rei da Índia, faleceu em Goa, em 1515, 17 anos após a chegada de Gama a Calecute, Portugal já era a potência dominante no comércio do Índico.

Este existia há séculos e funcionava de forma suave e pacífica, até que os portugueses chegaram e, à força de canhão e alguns actos bárbaros para demonstrar a sua implacabilidade e determinação, se substituíram aos mercadores em actividade ou obrigaram-nos a sujeitar-se às suas leis, condicionantes e práticas extorsivas. 
As insinuações dos mercadores árabes junto do samorim tinham, afinal, fundamento: os portugueses queriam comerciar, mas os seus métodos eram dignos de piratas.

























Forte de Nossa Senhora da Conceição de Ormuz, mandado erguer por Afonso de Albuquerque em 1507, no Estreito de Ormuz, a fim de controlar a navegação no Golfo Pérsico

Nas suas cartas a D. Manuel, Albuquerque descreve com orgulho os massacres que perpetrou – “Incendiei a cidade e matei toda a gente. 
Os nossos homens passaram quatro dias a matar […] onde conseguimos entrar não poupámos a vida a um único muçulmano. 
Obrigámo-los a ir para as mesquitas e incendiámo-las. […] 
Foi, meu senhor, um feito muito bom” – e justifica-os: “Este uso do terror será grandioso para a obediência a Vossa Alteza sem necessidade de os conquistar”.

Como escreve Roger Crowley em Conquistadores: Como Portugal criou o primeiro império global (Presença), Albuquerque consolidou “um conceito revolucionário de império. 
Os portugueses sempre souberam que eram poucos, muitas das suas conquistas iniciais foram contra números vastamente desiguais. 
Abandonaram rapidamente a ideia de ocupar grandes áreas territoriais. 
Desenvolveram antes […] o conceito do poder naval flexível aliado à ocupação de fortalezas defensáveis na costa e uma rede de bases. 
Supremacia no mar, as competências na construção de fortalezas, navegação, cartografia e artilharia, a mobilidade naval e a capacidade de coordenar operações em espaços marítimos vastos, a tenacidade e a continuidade dos seus esforços, um investimento feito durante décadas na construção naval, aquisição de conhecimentos e recursos humanos, possibilitaram uma nova forma de império distante e naval, capaz de controlar o comércio e os recursos em extensões enormes e distantes”.

O domínio português sobre o comércio do Índico e do Extremo Oriente durou quase um século e a sua contestação não veio dos reinos asiáticos nem do Império Otomano, mas de rivais europeus.































Detalhe do planisfério de Cantino, assim chamado por ter sido obtido, clandestinamente, para o Duque de Ferrara, em 1502, por um seu agente em Lisboa, de nome Alberto Cantino, possivelmente através do suborno de um dos cartógrafos que trabalhava para a corte. As ilhas de Ormuz e Socotorá, que são minúsculas e improdutivas mas permitem o controlo da entrada do Golfo Pérsico e do mar Vermelho, são assinaladas a vermelho, o que dá ideia de que, muito cedo, os portugueses delinearam um plano para se apoderar do comércio no Índico


4 - Tenochtitlan, 1519: As grandes superfícies americanas
Enquanto os portugueses tomavam conta das rotas no Índico, na outra metade do mundo que lhe fora concedida pelo tratado de Tordesillas, os espanhóis começavam a estabelecer o seu império no Novo Mundo, a partir das bases estabelecidas em Cuba e Hispaniola. Diego Velásquez de Cuellar, que, após conquistar Cuba, em 1511-14, fora nomeado governador da ilha, enviou expedições ao continente americano em 1517 e 1518; em 1519, designou para o comando da terceira expedição Hernán Cortés, mas o reacender de um velho desaguisado entre os dois homens levou Velásquez a retirar-lhe o comando. 
Cortés desobedeceu-lhe e desembarcou no México com 500 homens e 13 cavalos. 
Após várias peripécias, a 8 de Novembro de 1519, as tropas de Cortés entravam na capital azteca, Tenochtitlan, a convite do imperador Moctezuma II.



























Cortés e a sua amante-intérprete La Malinche são recebidos por Moctezuma, segundo desenho c.1550

Tenochtitlan, erguida numa ilha no lago Texcoco, ocupava 8-13 Km2 e, embora de fundação relativamente recente (tinha menos de 200 anos), era a maior cidade da América pré-colombiana – a maioria das estimativas da sua população ronda os 200.000-300.000 habitantes, embora haja estudiosos que apontem para 70.000 e outros para 700.000. Por esta altura, Sevilha, a maior cidade de Espanha, teria c. 50.000 habitantes e Lisboa e Londres teriam população similar.
















“A grande cidade de Tenochtitlan”, mural de Diego Rivera no Palácio Nacional do México, 1945

Cortés ficou impressionado com o bulício e abundância dos seus mercados: “a cidade possui várias praças onde funcionam mercados e se comercia. 
Uma delas, duas vezes maior que a de Salamanca, está rodeada por arcadas onde, diariamente, mais de 60.000 almas compram e vendem e onde pode encontrar-se todo o tipo de mercadorias produzidas nestas terras”. 
A impressão é corroborada por um dos seus homens, Bernal Diáz: “Ficámos pasmados com o grande número de pessoas e a quantidade de mercadorias, bem como à boa ordem e às correctas disposições em vigor”.

























Reconstituição de um mercado de Tenochtitlan, no Museu Nacional de Antropologia da Cidade do México

Como escrevem Kenneth Pomeranz & Steven Topik em The world that trade created: Society, culture and the world economy (M.E. Sharoe), por altura da chegada dos espanhóis, o comércio na Meso-América era florescente: “turquesas e prata do Novo México eram trocadas em Tenochtitlan por taças, facas, pentes, mantas e adornos de penas”; os aztecas e os seus vizinhos comerciavam “borracha de Veracruz […], peles de jaguares e mel do Yucatán, ouro da Nicarágua, cacau e obsidiana das Honduras e El Salvador, ouro da Costa Rica”, numa rede de trocas abrangendo uma “distância equivalente à que separa o Sul de Espanha da Finlândia”.

























Reconstituição do mercado de Tlatelolco, cidade-irmã de Tenochtitlan, situada, como ela, numa ilha do lago Texcoco; Field Museum of Natural History, Chicago

A intensidade e extensão do comércio meso-americano é tanto mais invulgar por as civilizações da região desconhecerem a roda, não existirem animais de tiro ou carga nem grandes rios navegáveis e por a topografia ser extremamente acidentada e de a maior parte do território estar ocupado com florestas densas ou desertos inóspitos. 
As mercadorias eram transportadas às costas ou à cabeça de carregadores, muitas vezes por veredas estreitas e escorregadias e vacilantes pontes de corda, um sistema de transporte que, entre os maias, assentava num regime de semi-escravatura.























Reconstituição do mercado de Tenochtitlan

Mas a maior parte desta efervescente movimentação de mercadorias na Meso-América não era verdadeiro comércio, antes pagamento de tributos dos estados-vassalos ao Império Azteca. 
Quando, em 1521, após uma incrível série de peripécias e reviravoltas, onde a ingenuidade dos aztecas só tem par na matreirice, cobiça e implacabilidade dos espanhóis, Cortés, com a ajuda dos seus aliados Tlaxclan e de uma epidemia de varíola que dizimou os aztecas, conquistou Tenochtitlan e depôs o imperador Cuauhtémoc (Moctezuma tinha sido executado, em 1520, pelos espanhóis que acolhera como hóspedes no seu palácio), todo este sistema comercial se desmoronou, já que se extinguiu o império a quem era devido tributo.






















“A conquista do México por Cortés”, por autor anónimo, segunda metade do século XVII

Como explicam Pomeranz & Topik, a Meso-América não deixou de produzir riquezas, como ouro e cacau, mas estas passaram a ser produzidas e transportadas sob supervisão espanhola, enquanto as peles de jaguares e os ornamentos de penas, que não tinham valor para os espanhóis, deixaram de circular.



















“Os últimos dias de Tenochtitlan”, por William de Leftwich Dodge, 1899


5 - Ningbo, 1523: Piratas anões e contrabandistas
A história do Japão é marcada pelo isolamento, mas é inegável que muita da sua cultura tem origem chinesa e a China foi, durante muitos séculos o seu mais importante parceiro comercial. 
O comércio marítimo entre os dois países começou a desenvolver-se a partir do século VII e os dois principais portos chineses demandados pelos mercadores japoneses eram Ningbo e Hangzhou.

Porém, às costas chinesas não chegavam apenas mercadores japoneses: eram também frequentes os raids de piratas japoneses, que os chineses designavam pejorativamente por Wokou, ou “piratas anões”. 
Acontece que o shogunato Ashikaga, que governou o Japão entre 1338 e 1573 (o imperador estava remetido à condição de figura decorativa), era relativamente débil e não era capaz de controlar a proliferação de bases de piratas nas zonas periféricas do Japão. 
Em resposta, os Ming (que ascenderam ao poder na China em 1368) impuseram sérias restrições ao comércio internacional, que ficou limitado a missões oficiais e ao pagamento de tributos pelos estados-vassalos. 
O primeiro grande embargo ao comércio internacional foi imposto em 1371 pelo imperador Hongwu e a severidade das medidas variou com as épocas – houve alturas em que quem fosse apanhado a comerciar com o estrangeiro era executado, sendo a sua família e vizinhos condenados ao exílio; os portos foram fechados e obstruídos com pedras e estacas; foram afundados navios e destruídos estaleiros.





















Confronto entre chineses e piratas japoneses, pintura chinesa do século XVIII

Alguns historiadores sugerem que a ideia dos Ming não era acabar com o comércio mas forçar os shogun japoneses a suprimir as bases piratas, na expectativa de que a China lhes abrisse novamente os portos. 
Mas as costas da China continuaram a ser assoladas pelos “piratas anões”, embora, na verdade, no início do século XVI a presença japonesa nas hostes Wokou se tivesse tornado minoritária – os chineses representavam agora 70% das tripulações.

O banimento do comércio esteve, porém, longe de ser completo, devido ao desleixo dos funcionários ou ao seu suborno e também a um entendimento lato do que era um estado-vassalo. 
E para o imperador chinês, o Japão fazia parte desta categoria, pelo que era autorizado um comércio limitado, mas extremamente profícuo, com o porto de Ningbo, o único em que era permitida a presença de mercadores japoneses.

Acontece que o shogunato Ashikaga ficou ainda mais enfraquecido após a guerra civil de 1466-67 e o poder no Japão ficou dividido entre dois clãs: os Hosokawa, de Kyoto, e os Ōchi, de Yamaguchi. 
A rivalidade entre eles chegou ao ponto de, em Maio de 1523, o porto de Ningbo ter recebido dois “embaixadores” japoneses, cada um com a respectiva frota. 
O carregamento dos Ōchi era mais apetecível, mas a delegação dos Hosokawa foi mais eficaz no suborno do responsável do Gabinete de Comércio Marítimo; sentindo-se ludibriados, os Ōchi mataram um dos líderes da missão rival e queimaram os seus navios; e, não conseguindo deitar mão ao outro chefe da missão Hosokawa, que se refugiou numa cidade vizinha, deram largas à sua fúria, com incêndios e pilhagens, antes de zarparem de regresso ao Japão. 
E quando os chineses enviaram uma frota no seu encalço, os Ōchi deram-lhes combate, derrotaram-nos e mataram o seu comandante.

A retaliação chinesa a esta afronta foi o encerramento do porto de Ningbo e a interdição de todo o comércio com o Japão. 
Todavia, nem sempre as medidas dos governantes produzem os efeitos desejados: foi o que aconteceu neste caso, com parte dos mercadores chineses de Ningbo a prosseguir as trocas com o Japão, agora como contrabandistas, e outros a converter-se à pirataria.


6 - Nagasaki, 1580: Bárbaros do Sul no Império do Sol Nascente
Um grupo de mercadores portugueses, viajando num junco chinês que foi desviado da sua rota pelas tempestades e foi parar a Tanegashima, foram os primeiros ocidentais a chegar ao Japão, em 1543. 
A altura não podia ser mais favorável aos portugueses: por um lado, a supressão formal das relações comerciais China-Japão permitia-lhes agir como intermediários, por outro, o estado de guerra civil prevalecente no Japão fazia com que não existisse uma autoridade única e que os vários senhores da guerra disputassem entre si o favor dos portugueses.

D. João III aproveitou a oportunidade e em 1550 decretou que o comércio com o Japão era um monopólio da coroa portuguesa. 
Sete anos depois, a China, assediada por visitas cada vez mais frequentes de mercadores portugueses, cedeu-lhes o porto de Macau, a troco de um pagamento regular – tudo se compunha para que Portugal se tornasse no pivot do comércio entre o Ocidente, a China e o Japão.
































O descarregamento do “navio negro” (uma carraca portuguesa), numa pintura de Kanō Naizen (1570-1616). Este painel é um exemplo da arte nanban, que associa a técnica tradicional japonesa com a temática exótica dos estrangeiros

Os portugueses foram alterando as suas fidelidades consoante as melhores propostas dos senhores japoneses e em 1562 mudaram a sua base para Yokoseura, nos domínios do senhor Omura Sumitada, que se converteu ao cristianismo no ano seguinte, com o nome de Bartolomeu. 
Após conflitos internos que redundaram na destruição de Yokoseura, Sumitada deslocou o local de trocas com os portugueses para a vila piscatória de Nagasaki, onde cedeu um terreno para os jesuítas se instalarem. 
Em 1580, Sumitada receando que Nagasaki caísse nas mãos de um rival, entendeu que mais valia entregar “perpetuamente” toda a vila aos jesuítas. 
Empurrado pelo próspero comércio nanban (“nanban-jin” era o termo japonês para designar os “bárbaros do Sul”), o povoado cresceu rapidamente, para 5000 habitantes em 1590 e 15.000 em 1600. 
Ao mesmo tempo, o catolicismo também conhecia uma franca expansão, estimando-se que por volta do final do século XVII 300.000 japoneses se tivessem convertido à fé dos naban-jin.






























“Bárbaros do Sul”, num painel nanban c.1593-1600, atribuído a Kanō Domi

Porém, Toyotomi Hideyoshi, o mais poderoso daimio, estava decidido a conter a influência europeia e a assumir controlo sobre os vários senhores da guerra. 
Alguns destes tinham-se convertido ao catolicismo e estavam a forçar a conversão dos seus a impor-lhes usos cristãos e a permitir a venda de japoneses como escravos aos comerciantes portugueses, pelo que Hideyoshi tomou várias medidas – entre elas esteve, em 1586, o término da concessão de Nagasaki, embora o porto continuasse aberto aos navios portugueses. 
No ano seguinte, Hideyoshi publicou um decreto interditando a acção missionária dos jesuítas, mas como a lei produziu poucos efeitos e outras ordens religiosas continuaram a fazer missionação entre os japoneses, Hideyoshi tomou uma medida mais severa contra a pregação cristã, fazendo crucificar em Nagasaki, em 1597, 26 cristãos – seis missionários jesuítas espanhóis e mexicanos, três jesuítas japoneses e 17 leigos japoneses – mas nem por isso a difusão do cristianismo no Japão esmoreceu.


















“Os 26 mártires de Nagasaki”, gravura de Wolfgang Kilian, 1628

Sem comentários:

Enviar um comentário